... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013


LONGE
            O carro rolava à velocidade do passeio de domingo. Quase deserta, ao início daquela tarde de verão, a estrada secundária.
            A voz do companheiro começou a diluir-se na distância que, a pouco e pouco, se ia criando entre eles. Acenava com a cabeça, murmurava um ‘hum, hum’, de vez em quando, mas os seus olhos iam-se detendo numa curva familiar, uma casa particular, um jardim que o seu coração reconhecia, à medida que avançavam.
            Há quanto tempo não pensava nele? Na verdade pensava sempre nele. Desistira de tentar esquecê-lo. Mas há muito tempo que conseguira deixar de lembrar, constantemente, aquele tempo.
            Quando o amigo insistira em tomar aquele caminho, não pensara no assunto. Mas, à medida que os seus olhos iam reconhecendo os lugares, o coração ia recordando cada conversa, cada gargalhada, cada malícia. Já não lhe doía como antes. A angústia em forma de dor lancinante fora sendo substituída por aquela melancolia profunda.
            Impossível não comparar a alegria daqueles tempos com a monotonia do presente. O caminho fazia-se, então, de tranquilidade e sobressaltos, de risos e seriedade. Mas, sobretudo, da certeza de um caminho partilhado. Agora, apenas um vazio de saudade certa de longevidade.

domingo, 25 de agosto de 2013


NAÇÃO CRIOULA

            Escrito em forma epistolar, mas estruturado como um romance clássico, Nação Crioula (nome do último barco negreiro que cruzou os mares entre Angola e o Brasil) ressuscita a personagem coletiva criada por Eça de Queiroz e os seus amigos do Cenáculo, Fradique Mendes.
            Tendo por base a História de Portugal, do Brasil e de Angola do séc. XIX, Agualusa centra a ação no tráfico de escravos (Angola continuava a abastecer o Brasil com escravos, mesmo depois da proibição da escravatura), mostrando as contradições e conflitos daquelas duas sociedades coloniais, fazendo, no fundo, uma crítica irónica ao colonialismo português. Movimento abolicionista versus escravocratas.
            A credibilidade de Fradique Mendes, enquanto personagem (que se sabe ficcionada) é-nos dada através de outras personagens, também ficcionadas, mas inspiradas na realidade e pelas cartas de Fradique ao próprio, Eça, à sua madrinha Madame de Jouarre e à sua amada Ana Olímpia. Em Agualusa, Fradique continua a ser um homem movido pelas emoções, pela vontade de conhecer e entender novas culuras, marcado por inúmeras viagens, um homem adiantado para o seu tempo. Mas aparece preocupado com as questões políticas do Brasil e de África, com uma postura muito menos discreta do que em Eça.
            A não perder!


 

A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE MENDES

                Depois de ler Nação Crioula de José Eduardo Agualusa, foi-me impossível resistir a reler A Correspondência de Fradique Mendes de Eça de Queiroz.
            Dividido em duas partes, sendo a primeira (apresentação da personagem) a introdução à segunda (as cartas propriamente ditas), o livro apresenta a personagem Fradique Mendes como se tivesse realmente existido, privando com personagens reais. Uma personagem fascinante, ressuscitada, recentemente, por José Eduardo Agualusa.

domingo, 18 de agosto de 2013


UM POÇO À BEIRA-MAR

Saí da água gelada, tiritando daquele friozinho alegre de férias, e subi a areia aos pulinhos para me deitar ao sol a secar. Tenho sete anos e não há nada na vida de que goste mais do que estar metida dentro deste mar gelado e bravio. É claro que a presença dos meus pais constantemente à minha volta me dava aquela ideia de segurança total. Para quem com um ano de idade berrava como se a estivessem a esquartejar só de ver a areia … melhorei até demais, segundo os meus pais.

            A gritaria e a correria da multidão já tinham começado há uns minutos, quando consegui escapulir-me das mãos da minha mãe, gritando-lhe que ia ter com o meu pai que, entretanto, já estava à beira mar. Se os sete anos nos impedem de fazer muitas coisas, também nos permitem cirandar por entre uma mole humana afligida por uma tragédia.

            Na areia molhada, quase dentro de água (felizmente, naquela manhã, a maré estava baixa), um grupo de homens, deitados de barriga para baixo, formava um círculo à volta de uma corda que demarcava a linha para lá da qual não deveriam passar. Atrás de cada homem, outro o segurava, firmemente, pelos pés. Os homens deitados no chão escavavam a areia dentro do círculo marcado pela corda com um cuidado inquieto.

A certa altura, no meio do círculo, longe do alcance das mãos dos homens, a areia molhada começou a abater, afundando-se como num remoinho. A multidão gritou em uníssono. Num ápice, um dos homens soltou-se do que lhe segurava as pernas, saltou para o meio do círculo e escavou, desesperadamente, o buraco que a areia abria. Em poucos segundos tinha o braço direito todo metido dentro da areia e ao retirá-lo todos pudemos ver, na sua mão, uma pequena mecha de cabelos claros. Os outros homens esqueceram o cuidado, saltaram para dentro do círculo e escavaram furiosamente a areia à volta do braço do primeiro. De dentro do emaranhado de braços e mãos surgiu, então, uma visão horrenda: a cabeça de um garoto de cerca de dez anos! O rosto coberto de areia, os olhos fechados, a língua de fora completamente roxa e cheia de areia.

Mais confiantes na escavação, rapidamente retiraram todo o corpo inerte do miúdo. Ao grito horrorizado de quem assistia ao salvamento seguiu-se um silêncio arrepiante. Até as ondas marulharam baixinho. Mas bastaram poucos segundos para que o rapaz tossisse e iniciasse uma berraria pouco própria de quem deveria ter os pulmões cheios de areia.

Foi a única vez que vi um grupo de homens chorar.

Infelizmente nunca soube o que se terá passado a seguir. A mão do meu pai que me deveria ter dado dois pares de estalos e a voz da minha mãe que me deveria ter gritado silenciaram-se num carinho ainda mais doce do que o habitual.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013


 
A PRAIA

Hoje revisitei-me há 30 anos.
As pedras grandes e pequenas, bem macias. Os rochedos de superfície rugosa e escorregadia. Os rastos de espuma branca. A água límpida e fria à beira mar. E logo ali, a não mais de cinco passos, a profundidade negra de um mar bravo pouco seguro para inexperientes, mas estranhamente cheio de novos e velhos, homens e mulheres, crianças e pescadores. Sim, naquele tempo, os barcos de pesca disputavam com os veraneantes tanto o espaço do areal como o do mar.
Por vezes, a uns bons metros da praia, formava-se um extenso banco de areia para onde nos dirigíamos logo de manhã. Ficávamos ali deitados ao sol, com a água a molhar-nos o corpo enquanto a maré subia. Na volta, tínhamos de nadar até à praia, porque a subida da maré nos fazia perder o pé e porque o fundo do mar, escuro e assustador, estava coberto de algas macias e escorregadias que nos lembravam monstros desconhecidos.
E sempre aquele sol escaldante a penetrar na pele já seca, depois do banho, como agulhas finíssimas. A areia a escaldar, queimando os pés, obrigando-nos a correr, aos pulos, até alcançarmos a passadeira de madeira. Daquelas antigas, estreitas, onde só cabia uma pessoa, feitas de ripas de madeira distantes entre si e cheias de ameaçadores pregos.
Nos fins de tarde, o por do sol tingia-nos a pele de um laranja quente que cheirava a areia e a verão. Maresia a pairar no ar, a entranhar-se nas roupas, no cabelo, na pele.  
E aquela extensão de praia! Areia a perder de vista! Um mundo de possibilidades a explorar.
À noite tudo ficava mais luminoso, as cores mais vivas, os risos mais vivos. Outra magia.
Guardo os cheiros, as cores, as texturas. A memória de uma vida que foi, de facto, cor-de-rosa!

domingo, 11 de agosto de 2013


OS LINDOS BRAÇOS DA JÚLIA DA FARMÁCIA

            Depois d’ A Amante Holandesa, tinha de ler mais José Rentes de Carvalho. Desta vez, temos uma série de contos sobre temas diversos - muitos deles ligados à terra -, e espaços diferentes: Lisboa, o norte de Portugal, Paris, Nova Iorque, Holanda. Ficção e realidade misturam-se, tal como narrador e autor.

            De facto, este é um escritor exímio, cuja prosa contida e equilibrada, em equilíbrio com uma análise mordaz da sociedade, nos faz sentir que, simplesmente, sabe contar bem uma história.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013


 NO INFINITO

Já hoje fui contigo ao Infinito. Vesti-me de pele e preparei-me para te seguir limpa de mundo. (Mentira. Conheço-te. Sei que não posso despir-me de mim para me deixar levar, segura, plena da tua vontade.)

Pegaste-me pela mão e voámos pelos caminhos tortuosos que sempre escolhes. Mesmo os limpos acabam por ganhar escolhos que insistes em recolher para os atrapalhares.

Pássaros desorientados, ora subindo ora descendo. Porque os caminhos que escolhes se truncam uns nos outros, perdem o sentido, terminam no nada.

Em desvario dos sentidos, subimos tão alto que acreditámos ter atingido o ‘máximo+1’. (Mentira. Conhecemo-nos. Ambos sabemos que ‘bom’ é o nosso limite.)

Finalmente exaustos, sentaste-nos em nuvem aparentemente tranquila. Sacudimos a poeira da alma e conversámos sobre tudo e sobre nada, avançámos, recuámos. Rimos e sonhámos momentos mágicos.

E, de repente, como sempre, sem pré-aviso, descemos a uma velocidade atroz. Precavidos, pousámos os pés em terra, escapando com alguns arranhões.

Um dia, estatelar-nos-emos no chão …

                                      ou

Um dia, um de nós já não sentirá vontade de subir …