A VIAGEM
É noite em mim. A chuva
molha-me, gelada, incessante, ritmada. Os trovões ribombam na minha cabeça. Os
relâmpagos entram pelos dedos dos meus pés e sobem pelo meu corpo, queimando-me
as entranhas. É noite em mim. O negrume envolve-me como um manto angustiante.
Asas negras de aves negras abraçando uma alma negra. A sensação da chuva gélida
penetra na minha pele, aperta-me a carne, difunde-se pelos ossos, apaga o
incêndio dos relâmpagos, gela-me a alma.
E o sol fora de mim. O
calor sufoca as mulheres nos seus vestidos de seda, minúsculos, os homens nas
suas calças e camisas claras e até as crianças que tinham sido autorizadas a
brincarem na piscina. A festa está animada. Doces, salgados e bebidas exóticas
combinam em cores e sabores com a efusividade dos convivas. Não os detesto. Não
os odeio. Não os invejo, sequer. Já lhes pertenci. Ou, pelo menos, tive a
ilusão de lhes pertencer. Quando percebi que não passava de ilusão, que não
podia juntar-me a eles nem vencê-los, decidi vencer-me a mim própria.
Passar despercebida – já
que o sonho da invisibilidade sei-o irreal.
Gosto de festas. É muito
mais fácil não chamar a atenção. Permitem-me viajar para dentro de mim sem que
ninguém se aperceba da minha presença, da minha solidão. E se alguém,
inadvertidamente, repara em mim ou me dirige a palavra, tenho o treino
suficiente para dar uma quase - resposta, com um quase - sorriso, e rastejar,
de novo, para dentro de mim, sorrateiramente. Trata-se de uma tática
desenvolvida e aperfeiçoada, com grande perseverança, ao longo de muitos anos.
A princípio, o meu sorriso era amarelo e tinha dificuldade em esconder a dor
que os outros me infligiam. Mas, a pouco e pouco, e com vontade férrea, fui
conseguindo disfarçar, fingir, responder o que era expectável e começar a
construir a minha casa dentro de mim. Fui tão empenhada que consegui chegar a
este patamar de perfeição onde me encontro: quando sou confrontada, rodo o
botão da indiferença e, tranquilamente, regresso a “casa”, eliminando até os
ecos das vozes alheias. É claro que a
quantidade e qualidade das dores infligidas pelos outros tiveram uma
quota-parte significativa no aperfeiçoamento desta técnica.
*
É noite lá fora. E em mim. A minha
“casa” alargou-se ao meu quarto. Reconforta-me a dor que as paredes me
transmitem. A estas nada posso confessar. Absorveram os gritos, as zangas, os
insultos, as humilhações. Nem elas lhes resistiram. Cada grito tem um rosto, mas
misturam-se, confundem-se até já não se saber a quem pertencem. Nem importa.
Cumprem a sua missão de fazer doer. É tudo.
Aqui, no escuro, sentada
na minha cama, fixando o vazio, sei que mantenho, ainda, a minha sanidade
mental. Sei que não vou conseguir dormir. O dia foi cansativo. Viajar para
dentro de mim e manter-me, ainda assim, alerta quanto à possibilidade de um
confronto, desgasta-me. Em dias assim sei que não consigo dormir. Resisto, no
entanto, aos comprimidos. Sei que no dia em que começar não pararei. Ou que
será o fim. Nunca tinha pensado na minha morte. No entanto, ultimamente, essa
ideia tem-me feito companhia. Vou-a acarinhando como uma presença
reconfortante. O nada. Alguns comprimidos e pufff!!! Nada de confrontos, de
dores, de viagens. Nada mais que o vazio. Tenho plena consciência de que me
encontro na ténue e frágil linha entre a loucura e a sanidade, entre a vida e a
morte. Ainda tudo é possível. Tudo menos continuar aqui. Tudo menos continuar a
ser o cofre onde todos guardam as suas culpas, os seus rancores, as suas
mágoas, as suas frustrações. Um cofre aberto onde os outros encontram sempre
espaço para encerrarem mais uma dor.
Partir!
Partir seria bom. E
possível. Abrir o cofre, qual caixa de Pandora, e deixar sair todas as dores.
Vê-las esvoaçar como loucas, tontas de liberdade, ébrias de espaço. Sabê-las
buscando os algozes que as haviam encerrado em mim, mas, memórias doloridas,
confundindo-se, criando o caos. E eu … livre! Livre de tempo, de espaço, de
dor.
Partir é urgente. Partir
de mim, vencer-me.
A noite adensa-se fora
de mim. Esforço-me por não me deixar perder nela. Sinto-me perto do fim. A
linha fragiliza-se e fragiliza-me. Viajo nas minhas memórias. Sinto todas as
dores passadas e presentes. Cada uma volta a queimar-me como ferida lancinante,
insuportável.
Partir é possível.
Partir é urgente. O nada …
*
O aeroporto amanhece
cinzento e húmido. Sempre gostei de aeroportos. Agrada-me a ideia da partida. E
a do anonimato.
A avaliar pelos olhares
que os outros me deitam devo apresentar um aspeto pavoroso. Sinto os olhos
vermelhos, a pele pálida, o cabelo desgrenhado. A velha mochila leva apenas
duas mudas de roupa interior, uma camisa, um par de calças e um casaco quente.
Dirijo-me ao guichet e, perante o olhar estupefacto da funcionária, peço:
- Um bilhete para o
próximo avião que sair do aeroporto, não importa o destino.
Parti.
Olá, Ana!
ResponderEliminar"Balanço sobre uma vida de desencanto, mais representada que vivida", daria um bom título para este texto lindamente escrito.E "Longe é um bom lugar para se viver",poderia ser o outro ...
Boa Noite; até ao próximo.
Vitor
'Longe é um bom lugar para se viver' ... perfeito, Vítor!
EliminarAna C., boa noite!
ResponderEliminarHá já algum tempo não lia um conto tão intenso, nostálgico e maravilhosamente escrito como este. Cheguei a temer pelo que estava a ler, cheguei a pensar se a Ana estaria a precisar urgentemente de ajuda.
Olhe, simplesmente fabuloso, que dizer mais se só me vem à mente a palavra "ADOREI".
Beijinho,
Ana Martins
Ana, boa noite!
ResponderEliminarVim deixar aqui o que respondi no meu blogue, pois assim tenho a certeza que lê.
"Não tem que agradecer, Ana C., a vida é apenas uma passagem, na verdade não somos donos de nada nem de ninguém. Ajudar quem precisa, devia ser um sentimento comum a todos. Houve de facto uma altura em que ao ler o texto comecei a ficar muito preocupada mas, depois, no fim quando vi as etiquetas, pensei: Isto só pode ser um conto. Não sabe nem imagina o alivio que senti."
Beijinho amigo,
Ana Martins