... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

domingo, 20 de novembro de 2011

FIM DE LINHA


A quarta-feira acordara cinzenta e a ameaçar chuviscos. Às nove da manhã já Matilde se encontrava na ampla sala do lar. Ampla não porque fosse grande, mas pelo vazio de mobiliário e de afetos. O edifício era constituído por dois andares, para além do rés do chão. Aqui apenas os dois elevadores estavam acessíveis ao público. No primeiro andar, a lavandaria, a cozinha e duas pequenas salas de arrumações. O coração da casa era o segundo andar. No longo corredor, o escritório da diretora, dez quartos, com duas camas cada um, uma casa de banho grande, ao fundo, uma sala de refeições e uma sala dupla, a de estar. Soalho de tábuas corridas, portas e tetos altos. Um total de vinte idosos.
Há dois meses, a doença tinha-lhe roubado os últimos movimentos que lhe permitiam alguma independência e também a fala. A família escolheu o lar – a rapidez da decisão mostrou-lhe que aquele plano estava há muito traçado – e levou-a num dia quente de julho. Estava sol e a viagem de 50 kms até à instituição que a acolheria foi penosa. Os filhos, pensando que ela se sentiria afogueada, ligaram o ar condicionado. Não lhes passava pela cabeça que a tristeza da mãe se devia à sua condição de velha a caminho de um lar. Não se lembravam de que Matilde gostava do verão, do calor, do sol. Não se lembravam de que já tinham sido como as famílias que viajavam nos carros que por eles passavam. Tinham pressa de chegar, deixar a mãe no lar, entregue a outros, e regressarem a casa. Ou vergonha. Pelo contrário, durante todo o percurso, Matilde observava as famílias que se dirigiam à praia – onde, ironicamente, se situava o lar – e revia-se nelas. Lembrava-se do tempo em que os filhos eram pequenos e ela se sentava à frente, ao lado do marido, o carro cheio de roupas, brinquedos, ralhos, risos e sol. Não havia ar condicionado, não havia silêncios, não havia pressa, não havia vergonha.
A sua entrada no lar foi rápida. Os filhos tiraram-na do carro, sentando-a na cadeira de rodas, e percorreram os dez metros de beco até à porta de serviço – a da entrada principal tinha cinco degraus. Entraram no minúsculo hall e, com grandes dificuldades, meteram-se no estreito elevador que os levou ao segundo andar. Encostaram-na a um canto do longo corredor e, durante cinco minutos, conversaram com a diretora do lar, num minúsculo escritório cujo interior conseguiu vislumbrar no momento em que a porta se abriu. O filho deu-lhe um beijo rápido. “Até domingo, mãe.”. A filha levou-a àquele que seria o seu quarto – partilhado com outra mulher em estado quase vegetativo -, verteu uma lágrima e saiu. (É tão fácil partir!).
Presa num espaço e num corpo que a excluíam do mundo, Matilde, cuja mente se mantinha tão ativa e arguta como há 40 anos, encontrou uma fuga. Recusou-se a adaptar-se a um lugar que considerava deprimente e às condições que a sua nova vida lhe impunha. Incapaz de impor a sua vontade no que respeitava ao seu corpo, usou a única coisa que preservaria sempre só para si e a que ninguém tinha acesso: a mente! Tinha sido uma mulher pragmática durante toda a vida. Segundo ela, a vida dividia-se em três momentos distintos, se bem que pudessem aparecer interligados: os momentos bons, os momentos maus e os momentos assim-assim. Decidiu, portanto, organizar os seus dias, de acordo com esta premissa. As segundas, quartas e sextas-feiras seriam dias bons. As terças, quintas e sábados seriam dias maus e os domingos seriam dias assim-assim. Apesar de o dia assim-assim ser um só, valia por três: era o dia das visitas! O equilíbrio era, portanto, perfeito.
Era sexta-feira. Um dia bom. Então Matilde fechou os olhos – se pensassem que dormia, não a incomodariam – e embrenhou-se nas suas recordações.
Ele fora buscá-la, manhã cedo, num sábado de fim de setembro. Novamente aquela sensação de liberdade, de que o mundo era perfeito, que a invadia sempre que estavam juntos. Percorreram o caminho até à Régua em menos de duas horas. Tudo a encantava. Naquela altura ainda pensava que o encantamento era recíproco. E que importava que não tivesse sido? Enquanto acreditou no engano foi feliz. Demorou-se na recordação do almoço, numa esplanada, à beira-rio, na noite fresca e no passeio de braço dado, no almoço de domingo, em Lamego, na subida à Senhora dos Remédios, no jantar já na praia da Costa Nova …
            Durante o dia foi interrompendo as recordações para se concentrar na difícil tarefa de comer. Também tentava prestar atenção a alguns episódios que se passavam à sua volta, de forma a, eventualmente, os usar a seu favor.
Depois do jantar, deitaram-na e Matilde continuou a sua viagem. Sentia que lhe restava cada vez menos tempo, mas não queria partir sem agarrar ainda outra recordação. Mais uma vez fingiu que dormia para que não a obrigassem a tomar o comprimido do costume. A eterna mania de se pensar que os velhos querem adormecer mal o sol se põe e, caso tal não aconteça, entupi-los de comprimidos para “descansarem”.
O que seria feito dele? Se estivesse vivo teria 89 anos, mais nove que ela. Provavelmente viveria também num lar. Durante muitos anos, a alma ardia-lhe de vontade de o procurar. À noite apetecia-lhe sair de casa e correr até cair exausta, gastar a energia frenética que a assolava por já não o ter consigo. O aperto no peito, a angústia, aquela dor física profunda que nasce das entranhas como se se tratasse de uma ferida lancinante, eternamente temperada com sal e vinagre nunca acalmou. Sabia que não lhe restava muito tempo de vida e a que tinha não passava de um charco lamacento, putrefacto e estagnado. Ter-lhe-ia bastado uma palavra dele que lhe mostrasse que ainda pensava nela.
Decidiu parar de pensar. Sempre tivera essa capacidade extraordinária de desligar o pensamento em momentos particularmente dolorosos.
Um dia alguém lhe dissera que o seu maior medo era morrer numa cama de hospital sozinho. Ela sempre soubera que consigo seria assim.
Era sexta-feira. Um dia bom. Matilde sentiu que sábado já não seria um dia mau. A sua viagem chegava ao fim. Os filhos, os pais, o marido, alguns amigos … mas foi com a imagem do rosto dele que partiu. E as palavras dele quando acordou da primeira noite que passaram juntos: ”Olá. Estás aí?” Partiu com o mesmo sorriso que lhe devolveu nessa manhã.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O OUTRO LADO DO ESPELHO


Chovia. O verão havia-se espraiado pelo outono dentro tornando-o seco e quente. Até há alguns dias atrás, as pessoas comiam as castanhas de sandálias e mangas curtas. Mas, agora, o inverno parecia ter chegado com a pressa que lhe conferia o atraso.

Em casa, Jorge preparava o ritual do costume. Tinha acabado de jantar, a cozinha estava arrumada e o sofá esperava-o. Pôs um cd a tocar, Aznavour, She, claro, e assomou à janela. Chovia, agora, torrencialmente, o vento assobiava e ele sentiu um arrepio, apesar do calor da sala. Pensou nela. Àquela hora estaria também em casa, a trabalhar, ou teria saído com alguém? Apesar do ciúme que ainda o consumia a cada minuto preocupou-se mais por ela estar na rua com aquele temporal.

Tinham terminado a relação há mais de um mês, mas ele não conseguia esquecê-la. Nem sequer tentava. A recordação daquela mulher continuava a fazer-lhe companhia durante o dia e a noite. É certo que já não lhe enviava mensagens nem lhe telefonava, mas continuava a senti-la tão próxima como antes, quando passavam o dia a falar-se.

Suspirou e virou-se para se dirigir ao computador para reler, mais uma vez, os mails dela e as conversas que tinham mantido durante quase cinco meses. Era o que fazia todas as noites.

Mas, naquela noite, sentia-se estranho, como se algo importante estivesse para acontecer. Perdido nos seus pensamentos, tropeçou numa cadeira esquecida por ali e, desequilibrando-se, acabou mesmo por cair. Levantou-se, esfregando as têmporas, e … ficou parado, petrificado! No espelho que se erguia diante de si Jorge via, claramente, a imagem de Marta que o olhava com estranheza. Na verdade, a mulher parecia tão espantada e assustada como ele!

A duzentos quilómetros dali, Marta tentava concentrar-se no trabalho. Era sexta-feira, mas queria terminar aquele relatório para ficar com o fim de semana livre. No entanto, a chuva intermitente não a deixava raciocinar. Pensava nele. Tinha sido um amor de verão, mas sempre soubera que seria no inverno que mais sentiria a falta da companhia dele. Não conseguia esquecê-lo. Sabia que, naquele momento, ele também pensava nela. Aliás, nenhum dos dois duvidava dos sentimentos do outro. Apenas não conseguiam viver juntos.

Não adiantava. O relatório teria que esperar. Selecionou, no computador, o She do Aznavour e levantou-se para ir buscar umas bolachas. Mas, de súbito, estacou. No espelho, em frente a si, o homem olhava-a, perplexo. Jorge!

Instintivamente, ambos levaram as mãos ao espelho. E, no momento em que se tocaram, o imponderável aconteceu: caíram num precipício que os puxava para baixo, num rodopio estonteante. E, enquanto caíam, o pensamento de ambos voava para as palavras que costumavam trocar no início da relação. Nenhum dos dois queria comprometer-se, mas sempre se tinham sentido à beira de um abismo que os atraía fatalmente. E, agora, ali estavam, voando em direção ao desconhecido, de mãos dadas.

A queda demorara apenas breves segundos e, rapidamente, se viram numa sala com cerca de 20 metros quadrados, rodeada de dezenas de portas feitas de espelhos. Todas pareciam iguais e não conseguiam sequer distinguir aquela por onde tinham entrado.

- Diz-me que isto é um sonho, por favor.

- O nosso sonho – sorriu Jorge.

- Tu brincas!? Não tens noção do que está a acontecer? Não percebes que estamos noutro mundo, fechados numa sala de espelhos, sem sabermos como sair daqui??

Marta continuava apavorada, mas, como sempre, rapidamente recuperara o sangue-frio e voltara ao costume de falar pelos cotovelos. Percebia que Jorge não estava demasiado incomodado com a situação. Percebia mesmo o agrado que ele sentia por estar ali, só porque estava com ela. E Marta também não conseguia perceber se o seu coração batia assim tanto por causa do inusitado da situação ou também por causa da presença dele.

- Repara, aquelas três portas parecem um pouco diferentes – disse Jorge. – as ombreiras são bastante mais grossas do que as outras. Experimentemo-las.

Abriram primeiro a da esquerda. Mal podiam acreditar. Do lado de lá da porta a sala de Jorge aparecia exatamente como ele a deixara há minutos atrás. Tentaram a da direita e lá estava o quarto de Marta, exatamente como antes.

- Quando a esmola é demais …

Marta achava estranho que conseguissem sair dali tão facilmente, mas não queria desperdiçar aquela oportunidade.

- Falta-nos a porta do meio. Não podemos voltar a casa sem vermos o que está por detrás desta porta.

- Estás doido!? Temos que aproveitar esta hipótese para sairmos daqui rapidamente!

- Vá lá, onde é que está aquele teu recanto aventureiro? Consegues mesmo sair daqui sem ver o que está ali? – sorriu-lhe, trocista, sabendo que ela não resistiria.

- Está bem. Entreabrimos a porta e espreitamos, só um bocadinho – cedeu ela.

Jorge não esperou que Marta mudasse de ideias e abriu a porta, escancarando-a. A princípio não perceberam. Do lado de lá via-se uma sala aparentemente normal. Mas ambos se sentiram percorridos por um calafrio. A sala parecia-lhes familiar como se a conhecessem há muito tempo. E o mais estranho é que cada um sabia que o outro sentia o mesmo.

- Entramos? – perguntou ele, desafiador.

- Não … - mas a voz dela hesitava.

Jorge pegou na mão de Marta e puxou-a devagarinho. Ela não resistiu. Tivera sempre dificuldades em resistir-lhe. Foram avançando. Marta ia dizendo que aquela sala era magnífica, simplesmente perfeita.

Virou-se para Jorge ao aperceber-se de que ele não lhe respondia. Viu-o lívido. Olhava para uma foto que estava em cima de um móvel que logo cativou Marta. Mas também ela se tornou lívida. Na fotografia, Jorge e Marta riam, abraçados, numa pose descontraída. Vestiam roupas que nunca tinham usado, estavam numa praia que nunca tinham conhecido. Entreolharam-se apenas, receando até o olhar um do outro. Passearam os olhos pela sala, perscrutando cada pormenor. O que viam deixava-os perplexos. Por todo o lado eram bem visíveis os vestígios de uma vida de casal. As fotografias que se perfilavam pelos móveis e paredes da sala eram testemunhas inabaláveis de uma vida em comum.

- Isto não está a acontecer. Ajuda-me, por favor! – gemeu Marta.

- É simples: de alguma forma, entrámos numa outra dimensão e encontrámos uma vida paralela à nossa. Nesta dimensão conhecemo-nos mais cedo, namorámos, casámos, vivemos nesta casa …

- A casa dos nossos afetos – sorriu Marta.

Jorge estranhou que o pragmatismo dela não a tivesse feito já voltar as costas àquela loucura. Sentiu-a ceder, enternecer-se com a ideia daquela vida a dois que lhes chegava reconfortante e tentadora. Sentou-se no sofá, puxou-o para ele e ficaram assim, uns momentos, de mãos dadas, saboreando aquela ilusão de vida. Jorge abraçou-a e começou a acariciá-la. A lareira estava, providencialmente, acesa e a luz era ténue. Marta deixou-se levar pelo sabor dos beijos dele. Que saudades tinha! Ainda sussurrou:

- Não … os donos da casa podem chegar … 

- Os donos da casa somos nós, querida - murmurou Jorge, aspirando o perfume da pele dela atrás da orelha.   

 Acordaram horas depois – ou o que lhes parecia ter sido horas – com o crepitar da lenha. Marta levantou-se rapidamente e preparava-se para sair dali, puxando Jorge que não parecia nada disposto a deixar aquela sala.
           - Não percebes a oportunidade que temos nas mãos? Se ficarmos, podemos viver esta vida. Juntos! Deixo tudo por ti, entendes?

- Entendo, sim. Entendo que tens um único laço na tua vida real. Eu tenho muitos. E, por mais aventureira que seja, tenho consciência de que “isto” não é real. Não sabemos sequer o que aconteceria se ficássemos.

Jorge sabia que não conseguiria demovê-la. Não valia a pena iniciar outra discussão. Sentiu-lhe a firmeza da voz. Decidiu, portanto, ceder e levá-la dali para fora. No fundo, também tinha medo do que poderia acontecer. Medo por ela. Deixou-se arrastar até à porta. Ambos hesitaram antes de saírem. Viraram-se para trás, passaram os olhos por aquele lugar, o casa deles. Marta virou-se repentinamente, puxando Jorge. Fechou a porta sem hesitar.

- Pronto, agora é só abrirmos as portas certas – disse Marta, convictamente.

- Espera! Quando voltarmos à vida real, provavelmente, não nos lembraremos do que aconteceu. Mas, mesmo que nos lembremos, não quererás falar comigo. Estas podem ser as últimas palavras que trocamos.

Marta aproximou-se dele, segurou-lhe o rosto nas mãos e perguntou-lhe com a doçura que o amor por aquele homem sempre lhe suscitara:

- Acreditas mesmo que não nos voltaremos a falar?

Soltou-lhe o rosto, depois de lhe depositar um beijo terno nos lábios. Virou-se, resoluta, abriu a porta que levaria ao seu quarto e entrou.

Jorge também não hesitou. Sem ela, aquele lugar tornara-se frio e aterrorizador. Abriu a porta que levava à sua sala e por ela desapareceu.

Marta estava sentada no sofá do quarto. Há dez minutos que olhava fixamente para o espelho. Não se lembrava de como chegara ali, mas recordava cada segundo desde que, ao levantar-se para ir buscar bolachas, deparara com Jorge do outro lado do espelho. Sentia-se confusa, triste, como se parte da sua alma tivesse ficado naquela outra sala, naquela vida que também era a sua. Seria possível que ela existisse numa vida paralela a esta, numa vida em que vivia com o homem que amava tudo o que ambos tinham sonhado juntos? Seria por isso que nesta vida em que não conseguiam entender-se também não conseguiam separar-se definitivamente? Precisava tanto dele naquele momento. Provavelmente a parte da alma que lhe faltava não tinha ficado na outra vida, mas sim na alma dele. Não queria ligar-lhe. Não sabia se ele se lembrava do que tinha acontecido e receava que a considerasse louca se lhe contasse.

Não precisou de esperar muito. O som do telemóvel despertou-a daquela letargia em que se encontrava. A voz dele soou-lhe como nunca. Parecia-lhe agora que estivera prestes a afogar-se, que não conseguia respirar e que só ao ouvi-lo subira à superfície da água.

- Meu Deus! Não imaginas como precisava de te ouvir!

- Isso quer dizer que não sonhei aquele sonho sozinho? – perguntou-lhe ele, ainda um pouco trémulo.

- Morri de medo que não te lembrasses. Seria terrível viver com esta memória sozinha.

- Precisamos de falar sobre isto – insinuou ele, timidamente.

- Vem!

- Estou aí em duas horas. Espera por mim, querida.

Na voz dele ouviu-lhe o sorriso luminoso, o brilho do olhar, sentiu-lhe o calor do coração. Queria-o tanto como ele a ela. E tudo perdeu importância. O sonho, a vida paralela ou o que quer que fosse. Nada importava a não ser o reencontro que se aproximava. Nenhum dos dois pensava já no que acontecera. O amor dos dois era mais importante, maior que tudo. Talvez o que acontecera tivesse sido apenas fruto da vontade enorme que tinham de estarem juntos, de se amarem, de não se perderem. Em duas horas voltariam a estar juntos. Numa outra casa, numa outra vida ou na vida que construiriam para eles. Nenhum dos dois duvidava de que a vida de cada um estaria para sempre ligada à do outro.

Deste lado do espelho, Jorge e Marta encontrariam, certamente, uma forma de permanecerem juntos. Destino? Não. Simplesmente, amor.







(Texto escrito para o blogue Fábrica de Histórias)







terça-feira, 15 de novembro de 2011

O GUARDIÃO DE LIVROS



    No início do século XIX, a corte portuguesa desloca-se para o Brasil, fugindo dos franceses. Algum tempo mais tarde, embarca, com o mesmo destino, a Real Biblioteca Portuguesa, acompanhada por Luís Marrocos, arquivista da referida biblioteca. Homem de caráter recatado, sóbrio e hipocondríaco, sente enormes dificuldades em adaptar-se a um país e a uma sociedade completamente diferentes dos seus, em termos de condições atmosféricas, paisagem, gastronomia e costumes, de forma geral (os brasileiros tomavam banho frequentemente – pasme-se!). Atormentado pelas saudades da família que, a pouco e pouco, se vai distanciando dele, Marrocos vai definhando até conhecer Ana Murça, uma brasileira, filha de um português, que desperta nele o amor, a paixão, o desejo, fazendo-o renascer, curando-lhe doenças e “doenças” e fazendo-o apaixonar-se pelo Rio de Janeiro. Uma criança ilegítima - porque nascida fora do matrimónio e numa época em que os juízos de valor da sociedade se impunham como autoridade quase divina -, vai determinar a ausência da felicidade completa do casal (imperdoável que a autora não nos relate o resto da vida da “órfã”!). Depois de uma carreira reconhecida pelo rei, Marrocos termina a sua vida com a consciência de se ter tornado num homem completamente diferente daquele que tinha chegado ao Brasil algumas décadas antes.
   
    Trata-se de um romance histórico que retrata de forma esclarecedora e interessante uma época marcante na nossa História e dois espaços completamente díspares. Uma narrativa também cheia de humor e de personagens interessantes.
     
    Lamenta-se, apenas, os erros que salpicam algumas páginas do livro. É simpático poder ler uma boa história … publicada com rigor linguístico!
     
    Cristina Norton nasceu em Buenos Aires, em 1948, mas vive em Portugal há mais de 30 anos, tendo optado pela nacionalidade portuguesa. Para além do nosso país, também publicou no Brasil e no Chile. Já escreveu poesia, romance e conto. Realiza oficinas de escrita criativa e dá cursos de formação a professores, organizados pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, pela Fundação Calouste Gulbenkian e outras instituições.
     
    Obra: O Afinador de Pianos, O Lázaro do Porto, Os Mecanismos da Escrita Criativa, O Segredo da Bastarda, O Barco de Chocolate, A Casa do Sal.

domingo, 6 de novembro de 2011


CARTA A UM MORIBUNDO


           Vais morrer.
Ando a preparar-me para esse momento há vários meses. É uma morte anunciada, mas sem data marcada.
Preparo-me apenas para o momento da tua morte. Faço um luto antecipado. Choro-te agora. O sofrimento posterior vivê-lo-ei intimamente, ninguém verá a minha dor. Penso em como serão os natais, as férias, os fins de semana sem ti. Penso, também, em todas as horas do dia em que te recordarei, nas lembranças retomadas nos lugares que frequentámos juntos. E nos olhares, nos gestos, nas palavras, nos silêncios …
Mas o que me preocupa, em primeiro lugar, é o momento da tua morte. Sinto os pensamentos encharcados de dúvidas e incertezas. Saberei, com antecedência, quando acontecerá? Estarei presente? Chorarei? Chorar preocupa-me. Faço-o raramente e sei que, se começar, dificilmente conseguirei controlar-me. Não, os meus olhos começaram já a guardar as gotas de chuva para as chorarem depois da tua morte. E tu, chorarás? Dir-me-ás algumas palavras de despedida? Ou partirás sem alarde, com a frieza de quem traçou, serenamente, o novo caminho? Tenho a certeza de que pouco falaremos. Haveria tanto para dizer! Quantas palavras choradas, quantas lembranças revividas! Ambos sabemos que pouco falaremos. Guardaremos as palavras que deram corpo a todas as coisas que sonhámos. Nem torrentes de lágrimas nem tempestades de suspiros.

*

Vais morrer. No momento em que me deixares. Naquele preciso momento em que dirás as palavras que te adivinho: “ Já não te quero como antes. Ficamos por aqui.”.
Depois, quando a calma apaziguadora chegar e eu me convencer que nem um fantasma do teu passado serei, atada aos fios invisíveis de que se tece a saudade, guardarei as nossas memórias desfeitas numa caixa cheia de pedaços de pouco e conjurarei as forças necessárias para a não abrir.
            Morro contigo.