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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

ENTRE TEMPOS

Chovia uma chuva fina e gelada e fazia um frio de lâmina de faca. A curtos espaços de tempo, repentino, o manto de névoa caía para, dali a poucos minutos, se desvanecer numa estranha limpidez.

À espera do futuro, olhava o longe, pela janela. Deixava os olhos passearem pelos castanheiros que se erguiam altos e esguios, na sua nudez perturbante e, na distância, deixava-os vaguear por montes e vales, casarios e descampados. Continuava a conversar contigo nessas horas eternas em que conversávamos, as horas boas da minha vida.

Naquele tempo, vivia nas nuvens. Ouvia-te e pequenos ecos de luz iluminavam-me os olhos. Entre nós cada palavra tinha uma sombra. Tudo era intensidade premente.

Naquele tempo, o imaginado voo das tuas mãos adoçava o tempo.

Naquele tempo, ora trovejava em mim um mar revolto de desassossego ora deslizava um rio manso de tranquilidade.

Agora, a vida conquistou-nos para a normalidade, cavando um fosso entre nós. Como sereia chamando do abismo, desenhou-nos caminhos diferentes. Náufragos do mesmo barco, rumámos direções diferentes. Perdemo-nos.

Agora, chove-me nos olhos a tua ausência, aguadilha-se na boca este vazio.

Agora, a minha saudade tem a cor da tua voz, o cheiro do teu riso, a macieza da tua alma.


Agora, a saudade corre por dentro da distância entre nós.

domingo, 15 de novembro de 2015


 ENTRE OLHARES

Cruzaram um olhar improvável. A inesperada tepidez da noite de novembro apanhara-os ainda embriagados da melodiosa voz africana de há pouco. Ele, sozinho, um copo de martini. Ela, com os amigos, um chocolate quente. Ela, risos. Ele, sorriso do riso dela. Novo olhar, mais atento. Ela, festa vestida de estrelas. Ele, solidão. Olhar cúmplice, sorriso retribuído. Ele, puxando-a para o seu mundo. Ela, já perdida da conversa. Ele, levantando-se para acompanhar o perfume que chegara. Ela, acompanhando a festa que terminaria noutro lugar. O olhar cruzado da despedida. A certeza de que, mesmo irrepetível, a cumplicidade lhes impregnaria as almas a tempo indeterminado. E toda a vida coube naquele olhar.

sábado, 31 de outubro de 2015



A VIÚVA
Uma mulher ficou viúva e criou, sozinha, as quatro filhas. Casadas as raparigas, a mulher achou que devia refazer a sua vida. Começou, então, a procurar marido. Para não gastar dinheiro em anúncios de jornal ou agências matrimoniais, pediu ao merceeiro do seu bairro para lhe arranjar um bom partido. De facto, quem melhor poderia cumprir tão melindrosa missão do que o merceeiro em cuja loja se abastecia uma pequena multidão das mais variadas idades, profissões, personalidades? A notícia correu meio bairro – aliás, bairro inteiro! -, mas de pretendente nada.
Um dia a mulher foi a uma excursão. Uma daquelas viagens baratas, com almoço, panelas e colchões incluídos. Pareceu-lhe uma excelente oportunidade para conhecer aquele que viria ocupar o lugar do seu defunto marido, tanto na mesa como na cama. E assim foi. Quis o destino que, depois uma fastidiosa manhã a ouvir falar das maravilhas da panela cujo vapor lhe cozinharia os legumes sem gota de água, se sentasse, ao seu lado, durante o almoço, aquele garboso homem. Alto, o cabelo preto, ondulado, de carnes ainda rijas e viúvo, com algo de seu e a precisar de mulher que lhe passajasse as meias e lhe limpasse a casa, pendeu-lhe, também a ele, o olho para a viúva.
Deu-se o casório, com boda simples, e instalou-se o ex-viúvo em casa da ex-viúva.
Vinte anos se passaram. Afinal, o algo de seu era mesmo um quase nada e o homem só ocupou o lugar do defunto na mesa, nunca na cama (vá-se lá saber porquê!).
Certo é que, já nos 80, o ex-viúvo começa a padecer de um tumor na zona genital, cai à cama, é hospitalizado, sedado, picado, privado de falas, vontades ou opiniões, sequer. Desenganado o homem pelos médicos, passa a ex-viúva a enganar-se logo na sua condição civil, assumindo ares de resignação e saudade pelo futuro defunto. Furtivamente, toma disposições caseiras, familiares e sociais – deixemos os pequenos crimes de “colarinho preto” cometidos pela nossa ex e expectante futura viúva a quem lhos facilitou -, agendando, já, o seu futuro. Registe-se que algumas destas disposições não obtiveram qualquer êxito. Assim, atónita por não conseguir vender o minúsculo património do ainda seu marido, herança da defunta, resolve a nossa ex futura expectante viúva fazer o futuro defunto viajar desta para melhor de forma condigna. E vai de mandar restaurar o jazigo de família (a do futuro defunto, claro). No cemitério, autorização para a obra, algumas palavras de conforto “Faz bem pensar em tudo com antecedência. Há que respeitar os mortos, mesmo que ainda estejam vivos.”. Em poucos dias, paredes pintadas de branco, porta desenferrujada, prateleiras novas, tudo limpinho e arejado, pronto para receber o já tão chorado marido. No bairro, palmadinhas nas costas, rostos compungidos, “Pobre senhora, coitadinha, que situação esta, ter de chorar um morto que ainda não o é, mas há de ser!”.
Há dias encontrei o casal numa rua do meu bairro. Ele mais magro, a cabeleira sempre farta e ondulada, de fato e gravata, passo lesto e sorriso irónico na comissura dos lábios. Ela, um pouco mais atrás, ligeiramente curvada, acabrunhada, de olhos no chão, caminhava penosamente.
Confesso que fingi não os ver. É que a única pergunta que me parecia pertinente era “Então e o jazigo novo … quem irá desfrutar dele??”


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


PRIMAVERA EM JANEIRO

Diz-se que as pessoas só são interessantes até se descobrir os seus segredos, porque eles são, habitualmente, banais quando vêm à luz do dia. Pois ela contrariava este dito.

16.43. Entrava no café dois minutos antes da hora combinada. Lentamente. Consciente do seu ar de elefante dentro de uma loja de cristais. Pesavam-lhe a idade, a gordura, as rugas, o tempo, os anos de maus tratos, tristezas, indiferenças.

A ele, no entanto, nada lhe pesava. O homem que esperava mantinha um aspeto bastante agradável. Magro, o cabelo ainda pouco grisalho, o andar ágil da juventude.

Sabia-o, porque há cinco anos que o seguia. Desde que à custa de muito tempo, trabalho e dinheiro conseguira reencontrá-lo, telefonava-lhe todas as semanas.

Relutante a princípio, negando a lembrança daquele amor da adolescência, ele acedera a dar-lhe o seu número de telemóvel apenas para evitar o falatório provocado pela insistência dela ao ligar-lhe para a escola.

A muito custo, conseguira que ele aceitasse um encontro, dois anos depois de o ter procurado. Casado e sem qualquer intenção amorosa para com ela, insistia para que parasse de lhe telefonar. Aliás, estivera dez meses sem atender as chamadas dela depois de alguns episódios bastante embaraçosos em que ela lhe deixava livros ou CD no capot do seu carro! Se ele soubesse das diligências que ela fazia para o ver! No início de cada ano letivo passava dias inteiros sentada no muro do rio, a uma distância segura da escola onde ele lecionava, para descobrir o horário dele e assim passar regularmente para o ver. Descobrira, também, onde ele vivia e, um dia, metera-se numa camioneta para passar à sua porta.

Sabia perfeitamente que ele só continuava a conversar com ela por pena. Feia, mal vestida, sem escolaridade, até a si o cheiro do próprio corpo enjoava. Desempregada, um ex marido agressivo, duas filhas longe e uma solidão pesada. Nada tinha a ver com aquele homem que seguira outro caminho. Um casamento feliz, uma profissão de sucesso, bom aspeto físico. Que lhe importava? Continuaria a pensar nele, a telefonar-lhe, a esperar por ele. Não tinha nenhuma outra alegria na vida. Orgulho? Vergonha? Que vantagem lhe trariam? Prescindia desses valores em favor da felicidade que aquela meia hora com ele lhe proporcionaria.

A porta do café abriu-se e foi primavera em janeiro.

domingo, 5 de janeiro de 2014


A VELHA

No relógio da sala, duas e vinte da manhã. Luísa continuava a trabalhar afincadamente. As palavras fluiam da caneta para o papel como se tivessem vida própria. As personagens das histórias iam tomando conta dela, direcionando-a, ora num tom tranquilo, calmo, repousante, ora em momentos de alucinantes delírios, guiando-lhe os dedos com frenesim de tresloucamento. Era sempre mais fácil quando as personagens eram verídicas, fantasmas do seu passado. Com essas não se atrevia a devaneios. Respeitava-lhes os sentimentos e os comportamentos. O pior era quando com elas mesclava seres fruto da sua imaginação. E que imaginação, a de Luísa!

Noventa e dois anos. Velha. Aliás, a velha. Para os filhos, as noras, a empregada, até para o empregado da mercearia. A velha. Sabia, melhor do que eles que, durante mais ou menos tempo, tinham sido vítimas da sua rabujice ditatorial – diria, mesmo, das suas maldades -, que merecia aquele tipo de tratamento desprezível. Durante toda a vida, impusera a todos um regime de autoritarismo que não admitia resposta. Senhora de um património considerável, usara-o, sempre, como facilitador de uma vida plenamente satisfatória. Fora esposa adúltera, mãe castradora, sogra execrável, patroa exigente. Mas, para todos os seus defeitos encontrara fundamentos. Não se arrependia.

Agora, com noventa e dois anos e sem doenças graves, divertia-se continuando a enganar os que a consideravam uma velha gagá.  Durante o dia comportava-se, de facto, como se estivesse a perder as suas faculdades mentais: levantava-se tardíssimo, ignorando as horas estipuladas para as refeições, fingia esquecer o que não lhe interessava lembrar, dizia o que lhe apetecia. No entanto, continuava extraordinariamente lúcida. Assim que a empregada saía, por volta da hora de jantar, começava o seu dia. Com a casa só para si, cozinhava o que lhe apetecia, comia no quarto, frente à televisão, revia antigas fotografias, joias, documentos de um passado que continuava vívido na sua memória. E escrevia. Contava tudo aquilo de que se lembrava – e Luísa lembrava-se de tudo! – e, quando se cansava dos que tinham povoado a sua vida, inventava novas histórias, com novas personagens. Zelaria para que os inúmeros cadernos pretos que continham as suas histórias fossem facilmente encontrados depois da sua morte. Mas, até nesse momento enganaria os outros: ninguém destrinçaria as histórias verdadeiras das inventadas! …

sexta-feira, 6 de setembro de 2013


HISTÓRIA DE UM CERTO ENGANO

Era uma vez um engano. Bem, a verdade é que nem sempre fora isso. Tempos houve em que o engano tinha sido uma certeza. … Não se pode acusar o pobre de ter sido um engano propositado. Pois se não tinha consciência de tal!

            Dera por si, certa tarde, devagarinho, assim como quem acorda de um coma sem memória de quem é. Aos poucos, foi-se reconhecendo e afirmando como uma certeza. A sua existência como tal tornou-se, até, um finca pé consigo próprio. Era uma certeza. Estava ali. Pronto!

            Mas, como a realidade era, de facto, diferente da consciência que tinha de si, a pouco e pouco, foi sendo tomado pela dúvida. O tempo, esse ora aliado consolidando certezas ora inimigo instilando dúvidas, foi minando a certeza da sua existência.

            Como era possível, pensava o engano, ter-se enganado daquela forma quanto à sua certeza? E agora? Como desfazer claramente a certeza e assumir-se como engano? Não lhe agradava causar a impressão de ser um engano premeditado. Precisava de se desfazer com elegância. O melhor seria sair da certeza em pezinhos de lã, assim como quem não quer a coisa. Deixar no ar a certeza-dúvida para adiar a possível acusação de engano ponderado e previsto. Afinal, ele próprio se tinha enganado!

            Assim, arregaçando mangas e paciência, foi-se desvanecendo como certeza, dando, lentamente, lugar ao engano que sempre tinha sido.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013


LONGE
            O carro rolava à velocidade do passeio de domingo. Quase deserta, ao início daquela tarde de verão, a estrada secundária.
            A voz do companheiro começou a diluir-se na distância que, a pouco e pouco, se ia criando entre eles. Acenava com a cabeça, murmurava um ‘hum, hum’, de vez em quando, mas os seus olhos iam-se detendo numa curva familiar, uma casa particular, um jardim que o seu coração reconhecia, à medida que avançavam.
            Há quanto tempo não pensava nele? Na verdade pensava sempre nele. Desistira de tentar esquecê-lo. Mas há muito tempo que conseguira deixar de lembrar, constantemente, aquele tempo.
            Quando o amigo insistira em tomar aquele caminho, não pensara no assunto. Mas, à medida que os seus olhos iam reconhecendo os lugares, o coração ia recordando cada conversa, cada gargalhada, cada malícia. Já não lhe doía como antes. A angústia em forma de dor lancinante fora sendo substituída por aquela melancolia profunda.
            Impossível não comparar a alegria daqueles tempos com a monotonia do presente. O caminho fazia-se, então, de tranquilidade e sobressaltos, de risos e seriedade. Mas, sobretudo, da certeza de um caminho partilhado. Agora, apenas um vazio de saudade certa de longevidade.

domingo, 18 de agosto de 2013


UM POÇO À BEIRA-MAR

Saí da água gelada, tiritando daquele friozinho alegre de férias, e subi a areia aos pulinhos para me deitar ao sol a secar. Tenho sete anos e não há nada na vida de que goste mais do que estar metida dentro deste mar gelado e bravio. É claro que a presença dos meus pais constantemente à minha volta me dava aquela ideia de segurança total. Para quem com um ano de idade berrava como se a estivessem a esquartejar só de ver a areia … melhorei até demais, segundo os meus pais.

            A gritaria e a correria da multidão já tinham começado há uns minutos, quando consegui escapulir-me das mãos da minha mãe, gritando-lhe que ia ter com o meu pai que, entretanto, já estava à beira mar. Se os sete anos nos impedem de fazer muitas coisas, também nos permitem cirandar por entre uma mole humana afligida por uma tragédia.

            Na areia molhada, quase dentro de água (felizmente, naquela manhã, a maré estava baixa), um grupo de homens, deitados de barriga para baixo, formava um círculo à volta de uma corda que demarcava a linha para lá da qual não deveriam passar. Atrás de cada homem, outro o segurava, firmemente, pelos pés. Os homens deitados no chão escavavam a areia dentro do círculo marcado pela corda com um cuidado inquieto.

A certa altura, no meio do círculo, longe do alcance das mãos dos homens, a areia molhada começou a abater, afundando-se como num remoinho. A multidão gritou em uníssono. Num ápice, um dos homens soltou-se do que lhe segurava as pernas, saltou para o meio do círculo e escavou, desesperadamente, o buraco que a areia abria. Em poucos segundos tinha o braço direito todo metido dentro da areia e ao retirá-lo todos pudemos ver, na sua mão, uma pequena mecha de cabelos claros. Os outros homens esqueceram o cuidado, saltaram para dentro do círculo e escavaram furiosamente a areia à volta do braço do primeiro. De dentro do emaranhado de braços e mãos surgiu, então, uma visão horrenda: a cabeça de um garoto de cerca de dez anos! O rosto coberto de areia, os olhos fechados, a língua de fora completamente roxa e cheia de areia.

Mais confiantes na escavação, rapidamente retiraram todo o corpo inerte do miúdo. Ao grito horrorizado de quem assistia ao salvamento seguiu-se um silêncio arrepiante. Até as ondas marulharam baixinho. Mas bastaram poucos segundos para que o rapaz tossisse e iniciasse uma berraria pouco própria de quem deveria ter os pulmões cheios de areia.

Foi a única vez que vi um grupo de homens chorar.

Infelizmente nunca soube o que se terá passado a seguir. A mão do meu pai que me deveria ter dado dois pares de estalos e a voz da minha mãe que me deveria ter gritado silenciaram-se num carinho ainda mais doce do que o habitual.

segunda-feira, 10 de junho de 2013


O CHAPÉU DE CHUVA

            A chuva caía miúda, constante, fria. Parada no tempo. Cinzento. Indiferente. Nada era bom, bonito, alegre. Noutro lugar do mundo o sol brilharia, as cores refulgiriam e os sorrisos voariam, soltos pelo ar. Mas aqui a tristeza, o vazio. Carregava em mim todos os pesos do mundo.
            O chapéu de chuva seguia-me. Presente, protetor. O caminho fazia-se lentamente. Nas minhas costas dezenas de pares de olhos concentrados em mim. Dezenas de pensamentos na minha direção. Adivinhava-lhes as reflexões. As de cada um. Deve ser assim que se sentem as estrelas de cinema. Mas em bom. Sabia que em breve todos esses pares de olhos esqueceriam a comiseração do momento.
O desenho da calçada portuguesa no chão apresentava-se sujo e molhado. E o chapéu de chuva por cima da minha cabeça. Protegendo-me dos olhares cravados em mim. O caminho fazia-se em silêncio. O silêncio asfixia todos os barulhos. O silêncio de dezenas de passos. Atrás de mim, seguindo-me como se eu pudesse conduzi-los a um destino específico. Pendentes do meu ritmo, do meu rumo, das minhas emoções por soltar. E o chapéu de chuva protegendo-me, criando um muro para lá do qual as emoções esperavam a solidão.
            Concentrada no ruído das rodas sobre o empedrado, mordi as lágrimas que o chapéu de chuva teria, no entanto, escondido. As lágrimas que não choradas ninguém me perdoaria. Segui-o consciente de cada movimento, de cada som…
            Sabia que a vida me estava a virar do avesso, mas ainda não tinha descoberto que o avesso é o meu lado. Os pensamentos estavam demasiado desarrumados. Nos olhos vivia-me a vida passada. A minha vida suspensa, à espera de ser reescrita. Eu a crescer com o golpe duro da vida e com o teu toque suave na minha alma.

            Décadas de minutos mais tarde, um cemitério de dores ficava para trás. E o teu chapéu de chuva protegendo-me, enquanto te via desaparecer no espelho retrovisor…

sexta-feira, 17 de maio de 2013


UM MAR DE MEMÓRIA

            Sentada na esplanada do café, como habitualmente nos fins das tardes de verão, o meu coração sobressaltou-se ao som daquela voz. Dei por mim, mais uma vez, a desatar o nó da dor da saudade.
As mulheres apaixonam-se precisamente pelos homens que não lhes estão destinados. Ele não me estava destinado, mas eu insisti em apaixonar-me por ele. A minha persistência não o iliba de responsabilidade, mas sim de culpa. Ninguém é culpado pelos sentimentos que instiga no outro. Mas, é-se responsável por tal, se o fazemos propositadamente.
As relações mal definidas são quase indestrutíveis. Deixei que, em vez de falarmos de amor, falássemos sobre o amor, enganando com a ajuda de palavras uma inquietação que deveríamos ter resolvido com atos.
Sempre desconfiada e relutante, soube, desde o início, que seria ele a conduzir o jogo. Como um caçador experiente, rondou-me, cercou-me. Eu apenas um despojo, objeto da sua pertença, escolhido durante o saque entre duas batalhas.
Passávamos longas horas a conversar. Ora silêncios ora fluxos de palavras descontroladas. Em pouco tempo, a conversa enlanguescia ou transformava-se em injúrias. Agradava-me aquela espécie de esgrima interessante em que o meu rosto ostentava uma máscara e o dele simulava apresentar-se nu. Ambos perpetuamente desconfiados.
Estava condenada a perder, desde o início. Tornei-me incapaz de abandonar aquele álcool com que não queria, aliás, deixar-me embriagar. A minha atenção estava toda inteira concentrada nele, a sua dividida – família, amigos, trabalho, outras (várias) mulheres.
Como um frémito, um momento aflorou-me aquele recanto da memória. Amei-o, também, naquele preciso momento: numa simbiose perfeita, o toque e o olhar num movimento de desafio mais doce do que todas as carícias. Ao contacto da sua pele, todo o sangue dentro das minhas veias se desfez em mel.
Eu não duvidava de que pagaria penosamente pela resignação de cada minuto de espera, que a minha sensatez rapidamente me cobraria tal erro. Teve para comigo insolências e ternuras alternadas, apenas com o objetivo de se comprazer em fazer-me amar e sofrer mais.
Mas o melhor mel fermenta com o tempo. O seu procedimento para comigo tornou-se cada vez menos censurável, mas passei a puni-lo, talvez fora de tempo.
Exasperei-me, cansada da falta de inteligência dele – não me amar?! -, cansei-me de quimeras, dele e de nós. Perdi-me e perdi-o.
Nunca o esqueci e paguei os meus erros com a sua ausência.
Ele conquistou-me, mas nunca o tive.

 

           

 

sábado, 11 de maio de 2013


UM FIAPO DE MEMÓRIA

Sentado na esplanada do café, como habitualmente nas manhãs de sábado, o meu olhar demorou-se no som dos saltos da mulher. Dei por mim a retirar do fundo da memória uma fotografia desfocada, tirada a contraluz. Há quanto tempo não pensava nela? Uma eternidade de vazios, certamente.
As mulheres apaixonam-se precisamente pelos homens que não lhes estão destinados. Eu não lhe estava destinado, mas ela insistiu - repito: insistiu! – em apaixonar-se por mim. Tal persistência não me iliba de responsabilidade, mas de culpa sim.
As relações mal definidas são, aliás, quase indestrutíveis. Em vez de falarmos de amor, falávamos sobre o amor, enganando com a ajuda de palavras uma inquietação que deveríamos ter resolvido com atos.
A princípio desconfiada e relutante, a partir de certa altura foi ela que passou a conduzir o jogo. Forte, cerrado, de fêmea convicta. Não era mais capaz de não ser mulher. Cada centímetro do seu corpo gritava um desejo no qual a alma estava ainda mil vezes mais interessada do que a carne. Passávamos longas horas a conversar. Ora silêncios ora fluxos de palavras descontroladas. Em pouco tempo, a conversa enlanguescia ou transformava-se em injúrias. Agradava-me aquela espécie de esgrima interessante em que o meu rosto ostentava uma máscara e o dela se apresentava nu. Ambos perpetuamente desconfiados.
            Estava, já, condenado a perder. Tornei-me incapaz de abandonar aquele álcool com que não queria, aliás, deixar-me embriagar. Além disso, a minha atenção estava dividida – família, amigos, trabalho, outras (várias) mulheres … -, a sua inteira.
            Como um frémito, um momento aflorou-me aquele recanto da memória. Se a tivesse amado, teria sido naquele preciso momento: numa simbiose perfeita, o sorriso e o olhar num movimento de desafio mais doce do que todas as carícias. Ao meu toque, todo o sangue dentro das suas veias se desfez em mel.
Eu não duvidava de que pagaria penosamente por cada um dos meus erros e que a resignação com que ela parecia aceitá-los me seria cobrada a dobrar. Tive para com ela insolências e ternuras alternadas, apenas com o objetivo de me comprazer em fazê-la amar e sofrer mais. O meu procedimento para com ela era tornou-se cada vez menos censurável, mas é-se sempre punido fora de tempo. Pode-se confiar no fogo, desde que se saiba que a sua lei é morrer ou queimar.
Depois de se exasperar, cansada daquilo que tomava por falta de inteligência minha – como poderia eu não a amar?! -, cansou-se de uma situação em que só se deleitam os corações quiméricos, coisa que o seu pragmatismo estava longe de permitir. Cansou-se de mim e perdeu-nos.
            Com o tempo, saiu-me completamente da ideia. Não cheguei a pagar as minhas faltas, porque nunca a amei. Aos poucos foi perdendo a individualidade, as emoções que ela em mim suscitara dissolviam-se à distância na insignificante banalidade de um amor que não pedi nem senti. Ficou-me dela uma recordação desbotada.
Ela foi um país conquistado no qual nunca entrei.

 

quarta-feira, 27 de março de 2013


HISTÓRIA DE UM PESCADOR DE ÁGUA DOCE E DE CERTOS PEIXES (MAIS E MENOS) INTELIGENTES

Chegou às cinco da tarde. Hora pouco habitual para ir à pesca, mas para ele, a melhor. Depois do trabalho, apetecia-lhe relaxar, completamente dedicado ao que se propunha fazer. Era um traço da sua personalidade: só se dedicava a algo quando tinha o espírito plenamente disponível.   Muito mais do que um desporto, para ele a pesca era uma arte. O seu prazer começava com a preparação mental. Ia programando o melhor local, escolhia, mentalmente, o melhor isco, o anzol mais apropriado e, claro, o mais importante, selecionava meia dúzia de peixes passíveis de serem pescados. Toda esta preparação mental contribuía para exacerbar a antecipação do prazer da conquista. (Conquista? Pesca, pesca, claro! Que engano, o meu!)
            E cá temos o nosso pescador de água doce (de água doce, sim, que a pesca em alto mar era coisa para lhe dar trabalho a mais para satisfação intensa, mas breve!) refastelado na sua confortável cadeira, de cana na mão e sorriso plácido de predador certo da eficácia da sua mão.
            O isco foi lançado aos vinte e cinco peixes que por ali nadavam. Dez aproximaram-se. Escolheu cinco alvos. Esmerou-se na ostentação do isco. Um dos peixes, mais afoito, aproximou-se, perigosamente. Sorriu com serenidade. O peixe rodeou o isco, deu às barbatanas, praticamente pestanejou, qual diva sensualmente ingénua! Num repente, abocanhou o isco e … afastou-se rapidamente! Ao contrário do que se poderia pensar, o nosso, por vezes incauto, pescador, reconhecendo a inteligência do adversário, olhou-o enquanto se afastava com uma sensação de pasmo, mas também de respeito por tal adversário.
            E já um dos cinco peixes que marcara anteriormente como vítima lhe chamava a atenção.  Apesar de se destacar um pouco do cardume, via-se que era um daqueles peixes que mordem o isco e se deixam apanhar com alguma facilidade. Foi-lhe acenando com o isco, tornando-o atrativo, … até que a vítima se rendeu e se deixou prender. O pescador de água doce foi recolhendo a linha com muito cuidado (não fosse o peixe conseguir perceber como se desembaraçar do anzol!) e, pouco tempo depois, admirava o exemplar que tinha na mão. Sabia que não lhe restava muito tempo, nem tal lhe interessava. Conhecia o tempo exato durante o qual poderia usufruir do peixe, sem o matar. Perscrutou-lhe cada escama, acariciou-lhe a pele, melífluo, e, naquilo que considerou um gesto magnânimo, atirou-o, de novo, ao rio!
            Não o queria verdadeiramente. Nem àquele nem a nenhum dos outros que por ali pescava. O que o entusiasmava era o prazer do jogo, a paciência e o tempo que investia na preparação, a luta que, de quando em vez, um ou outro peixe lhe dava, a conquista e, finalmente, a magnanimidade da devolução da criatura ao seu estado anterior.
            Com tranquilidade, arrumou todas as suas coisas no carro e sentou-se ao volante. Suspirou, exibindo um sorriso plácido de verdadeiro regozijo por ser exímio naquela arte e partiu.
             Do que acontecia aos seres cujas vidas eram tocadas pelo pescador de água doce não reza a História.

 

 

domingo, 10 de março de 2013


JOGO DE SOMBRAS

Apesar da noite cálida, acolhia no peito o mês inteiro de novembro. Por entre a bruma do sonho, esta saudade dormida em silêncios. Silêncio dormido entre as sombras. O escuro, atrevido, a mordiscar-me os pés. Sono semi desperto. Sombra tomando forma. A do teu rosto. Convida-me.  Como um leão caçando o medo, sigo-te.
 Tu, refletido em várias sombras, eu seguindo-te. Tu, mal intuindo a minha presença, esquivando-te,  eu procurando-te. Tu de aço, eu de seda. Tu à beira do abismo, eu estendendo a minha mão de afago incipiente. Tu, arca de mistérios, eu sem saber em qual me escondo.  Tu, asa esvoaçando pelo quarto, escapando. Eu raíz.
Perco-te na obscuridade.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013


SAUDADE

     Esta noite tem o diâmetro de um campo que demora uma canseira de pernas a rodear. Lá fora, o silêncio pela rua carrega um bêbedo.
     Nas horas paradas da noite caminho dentro de mim. Trago comigo todos os caminhos do mundo.
     Esta mão gelada sobre o coração e a saudade que não cabe nele, escorre pelos olhos. Corda do tormento, enrolada na tortura da dor, nó cego na alma a dizer para onde quer voltar, fome de comer a presença que falta.
     A saudade dói como um murro no estômago. O coração para e a tristeza sobe à garganta, bem apertada, até que as lágrimas vêm em nosso auxílio. Depois, fechamos os olhos e aceitamos. Mas dói aceitar.
     A saudade não se cura. Suaviza-se. Só que, um dia, quando já não nos lembramos, acaba por voltar em pezinhos de lã.
     O passado é um armário cheio de esqueletos e fantasmas…

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


UM PAI ENTRE FILHAS

A manhã mal ía a meio, quando o pai irrompeu pela sala, com cara de muito poucos amigos, perguntando:
- Onde é que está a Marina?
A segunda filha, habituada aos disparates que ela própria e a irmã mais velha costumavam fazer desde pequenas e às fúrias do pai, sabia bem como amolecer-lhe o coração.
- Não sei, paizinho, a Marininha não está em casa, deve ter ido ao mercado – respondeu, com o ar mais inocente que conseguiu compor.
Mas, desta vez, o pai não parecia disposto a deixar-se divertir com os trejeitos claramente forçados daquela filha. Criar quatro raparigas não estava a ser tarefa fácil, apesar do que era pressuposto na primeira metade do século XX. É que as que lhe tinham calhado em sorte pareciam arraçadas do Diabo! Nem a mais nova, nascida dezassete anos depois da primeira – fora da época!, como dizia a mulher -, parecia augurar qualquer facilidade.
Mesmo assim, a mais velha passara das marcas! Uma menina de família a namorar, à noite, à porta da rua! Pior: dentro do átrio da entrada! Num vão de escadas! A cara caíra-lhe de vergonha quando um vizinho lhe contara. Mas o patife do Pipi ia ver-se com ele! Pipi era o diminutivo meio carinhoso meio trocista colocado ao desafortunado pela irmã mais nova, resultado de alguns subornos, tais como o cestinho de verga com que a presenteara e o dinheiro que lhe dava para ela ir comprar rebuçados, enquanto namorava “tranquilamente” a irmã mais velha.
Ah, mas a filha, essa ía aprender o que acontecia às meninas que desobedeciam a ordens expressas do pai: “Não namorar sozinha!”, ”Não namorar à noite!”. Deveria ter imposto uma única e simples regra: ”Não namorar!”. Diacho da rapariga! A quem teria saído assim namoradeira? À mãe não, com certeza. Devia era fechar as quatro num convento. Enfim, era no que dava viver numa casa só de mulheres!
Fechado no sótão, absorto nestes pensamentos, ouviu o som da cancela da porta a fechar-se. Levantou-se, respirou fundo e … perdeu os preciosos segundos que seriam responsáveis pela vergonha que lhe sucederia.
Quando chegou à sala, voltou a encontrar a segunda filha novamente sozinha.
- Onde é que se meteu a tua irmã, Judite?
Perante o ar ameaçador do pai e o cinto que ele ostentava na mão, a rapariga, aterrorizada, deixou-se trair pelo olhar de aflição que dirigiu à cama dos pais que se vislumbrava através da porta entreaberta.
Ao ouvir o vozeirão atroador do pai, acorriam, já, à sala, a mãe e as outras duas irmãs mais novas.
De cócoras, junto à cama debaixo da qual a filha mais velha se escondera, o pai raspava o cinto no chão, tentando puxá-la para fora.
- Manuel, nãoooooooo!!! – ainda lhe gritou a mulher.
Mas, já o bacio, cheio de uma noite longa, se entornava em cima do pobre homem que, segundo reza a História, era asseadíssimo!
Perante a desgraça, divididas entre a aflição, a comiseração ou o riso, as cinco não resistiram ao último e as gargalhadas rebentaram pelo quarto, espalhando-se em ondas de afeto!
Quanto à reação do pai, nunca nada foi comentado na família.
Do “inocente” Pipi não mais se soube (embora lá em casa houvesse uma espada e um revólver!).
Ao longo de vários anos, vários outros namorados terão sobrevivido à vivacidade das quatro raparigas, à vigilância apertada da mãe e às fúrias de um pai que, certamente, terá sentido um imenso alívio ao casar a última filha!

(Sempre saudades destas tias!)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


                                                                                           TAITAI                               

            A Taitai chegou àquela que viria a ser a minha primeira casa cerca de cinco anos antes de mim. Quase recém nascida tornou-se, obviamente, o bibelot da família: biberon, mimos e tudo aquilo a que uma gata de boas famílias que se preze tem direito. Dona e senhora da casa – aliás, todo o prédio de dois andares estava por conta dela! -, não lhe agradou a minha chegada. Portanto, logo que nasci, tornei-me num alvo mais apetecível que qualquer mísero roedor que sofresse o infortúnio de se cruzar com a temível gata.
 Temível, sim! A bicha infernizou-me durante os meus primeiros seis anos de vida. É certo que nunca me fiz de novas e retribui sempre na mesma moeda. O carrinho das bonecas, por exemplo, era o meu instrumento preferido de tortura – ao longo do comprido corredor, passeava-a dentro dele, tapada com um cobertor, sob os olhos vigilantes da minha mãe que, apesar das inúmeras e constantes tentativas de nos aproximar, sabia que a bicha não era flor que se cheirasse.
Mas havia outras formas de me vingar daquela vez em que a minha avó a tinha encontrado com as patas dianteiras pousadas em cima do meu berço a olhar-me fixamente, enquanto bufava de dentes aguçados e pelo eriçado.
Seis anos depois de muitos odiozinhos mútuos, a Taitai finou-se. Conta a lenda familiar que a gata esperou que a minha mãe – o ser que ela mais amava no mundo! – chegasse do cinema para morrer nos braços dela. Naquela noite, ninguém me deixou aproximar da gata. De manhã, o meu pai pô-la dentro de uma caixinha de sapatos e foi sepultá-la no Choupal.
Todos devíamos morrer nos braços daqueles que amamos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


HOSPITAL DAS BONECAS

            E de repente aquele cheiro. Cheiro de boneca antiga. Lembrei-me da minha boneca Cindy (logo eu que nunca fui de brincar com bonecas!).
Esta foi, com certeza, a avó da Barbie. Ao contrário das bonecas da época, a Cindy era magérrima. Alta, esguia, de cabelos loiros, compridos, olhos azuis e a pele de um bege rosado. A minha tinha, também, já, um considerável guarda roupa confecionado pela minha mãe (santa paciência de mãe!). Destacava-se um elegantíssimo vestido de organdi vermelho, corpo justo, sem mangas (mas, também, sem decote!), com saia cortada em três farfalhudos folhos.
            Um dia, a Cindy perdeu a cabeça. Literalmente. (Apetecia-me comentar “Como acontece a qualquer loira que se preze.”, mas sou amiga de loiras tão interessantes e de morenas tão ocas que deixo espaço para tal comentário para os dedos de um qualquer intelectual de vão de escada). Prefiro não explicar como tal tragédia aconteceu, não vá um qualquer psicólogo, vizinho de vão de escada do pseudointelectual, aplicar-me um rótulo de homicida, psicopata ou outro qualquer epíteto traumatizante. De realçar, apenas, o facto de nunca mais ninguém me ter oferecido uma boneca. Lá levámos, então, a pobre Cindy ao Hospital das Bonecas.
Não sei se era esse o nome escrito na entrada do lugar (eu ainda não sabia ler), mas, se não era, devia ser. Era um excelente nome. O prédio antigo ficava numa movimentada, mas estreita rua da Baixa. O Hospital das Bonecas ocupava uma loja relativamente espaçosa num r/c, abaixo do nível da rua. Era um lugar escuro (para ajudar na recuperação das bonecas, pensava eu) e deveria parecer fantasmagórico aos olhos das outras crianças (aos meus não, nunca fui medrosa), com as prateleiras que forravam as três paredes repletas de bonecas nuas. Cheirava a bonecas nas quatro ruas que ladeavam aquela. Hoje cheira a carteiras de senhora, colares, postais (como se alguém ainda escrevesse postais!), roupas …
            Se as bonecas ainda fossem ao Hospital, nem elas já cheirariam a bonecas.

sábado, 29 de dezembro de 2012


UMA CASA

ELE - Estou a construir uma casa.
ELA - Não tinha percebido.
ELE - Pensei que a querias construir comigo.
ELA - Querer é diferente de dever.
ELE - Queres, mas não deves. É assim?
ELA - Sim.
ELE - Porquê?
ELA - Não confio na solidez da casa.
ELE - A solidez está a ser construída lentamente.
ELA - Concordo com essa ideia, se a pensarmos só por si. O tempo parece-me  
          fundamental para consolidar o que quer que seja.
ELE - Então por que não confias?
ELA - Não consegues dedicar-te à construção de uma única casa. Sentes necessidade
         de vários ninhos. Ergues um pilar importante nesta, mas, logo de seguida,
         abandona-la para ires colocar um tijolo noutra, um pedaço de cimento noutra,
         uma pintura noutra ainda. Isso inviabiliza uma construção sólida, segura,
         confiável.
ELE - São tijolos, cimentos, pinturas isolados. Sem relevância. Esta é que é a casa
         importante.
ELA - Errado. A simples existência de várias casas retira importância a esta. Além disso,
         construíste a tua casa importante há muito tempo. Esta seria apenas temporária.
         ‘Tudo mesmo que durante pouco tempo’, não é? Prefiro ‘tudo durante muito 
         tempo’.
ELE - Intransigente!
ELA - Não, convicta!
ELE – A convicção é a maior inimiga da verdade.
ELA – A tua verdade é pouco.
ELE – A tua verdade é que tens medo de te expores.
ELA – Expormo-nos ao outro é o prelúdio da traição.
ELE – Cavas um fosso entre nós …
ELA – Constróis pontes entre muitas casas ...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012


OUTRO CAMINHO

            Sozinho no meio da multidão, olhava em volta, procurando referências. Um recanto conhecido, um rosto vagamente familiar, algo que o ligasse à sua vida. Nada. Absolutamente nada. Sorriu, feliz. Estava completamente sozinho no mundo.
Assolou-o, novamente, aquela sensação de inebriante liberdade. Há oito horas atrás, do outro lado do planeta, cortara todos os laços. A ideia germinava nele há algum tempo. Era, no entanto, algo utópico que, acreditava, nunca conseguiria levar a cabo. Começara por pensar, como quase todos nós, uma vez na vida, em como lhe apetecia desaparecer, deixar tudo e todos para trás. Mas, ao contrário do que acontece com a maioria das pessoas, nele a ideia foi ganhando corpo, tomando contornos de quase obsessão. Mesmo assim, sentia-se incapaz de a concretizar. Era apenas um refúgio num desvão escondido da sua mente. Mas, a discussão com o chefe, aquela pequena e inconsequente troca de palavras que, noutro momento, com outra pessoa, teria sido irrelevante, fê-lo decidir-se. Sabia que nunca conseguiria justificar o motivo daquela tomada de decisão, naquele momento.
Documentos e dinheiro no bolso, partiu. Sem explicações, sem despedidas. Partiu. A verdade é que sabia que já há muito tempo tinha partido. O percurso até ao aeroporto demorou o tamanho do seu silêncio. O táxi rodava numa cadência veloz sobre o tapete negro da estrada. No aeroporto, o vozear da multidão toldava-lhe a vista. Podia escolher qualquer destino e nenhum teria de ser definitivo. Podia fazer o que lhe apetecesse. A escolha recaiu sobre o país o mais longínquo possível da vida que deixava para trás.
E ali estava. Sem remorsos, duvídas ou tristezas. Sabia que não ficaria na memória de ninguém pelo poder transformador das palavras nem pelo poder  regenerador dos seus atos. Seria apenas a recordação do inexplicável. Sentia-se completamente livre. Libertara-se do pó, do nada com que o tempo se encarregara de o cobrir.
Olhou, de novo em redor. E deixou que os seus passos o guiassem na direção que – livremente! – escolhera.

domingo, 16 de dezembro de 2012


NOITE LONGA

2.00. E o sono não chega.
            2.47. Lá fora, o som de três pancadas fortes, logo a seguir, o estilhaçar de vidros e, um minuto depois, o som de um carro a arrancar a alta velocidade. O café em frente é, mais uma vez, assaltado. Parece que a máquina do tabaco, mesmo à entrada, é bastante apelativa. O vizinho do lado telefona à polícia e explica o que acaba de acontecer. Minutos depois, um carro para.
            2.12. O vizinho do lado volta ao telemóvel. Desta vez deve ser alguma amiga também notívaga. Prefiro tentar evitar perceber o que ele diz, mas o tom em que fala não deixa dúvidas. Efabulo, imediatamente, um daqueles tórridos, impossíveis e fugazes amores virtuais. (Pelo tom de voz, tórrido é pouco!) Deve tê-la conhecido num chat, no Facebook ou num blogue. Não importa. O rapaz é novo, tem tempo de sobra para desperdiçar e perceber o que é verdadeiramente importante na vida.
            3.08. A vida vai passando por aqui. Um episódio antigo, outro recente, um triste, outro feliz. E o sono não chega. Noite tão longa, tantas coisas para resolver! Não me apetece. Prefiro conversar contigo. Gosto mesmo destas conversas. Não podes interromper-me, irritar-me, fingir que não percebeste nem “encostar-me à parede” com perguntas de respostas difíceis. Não deixarás nem eu deixo palavras presas numa refração de instantes. Uma espécie de vingançazinha pessoal. Os pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos.
            6.00. Começa a formar-se aquele limbo entre o estado desperto e o adormecido. As imagens misturam-se, confundem-se, diluem-se umas nas outras. Não me apetece adormecer …
            Acordarei daqui a pouco e lavarei dos olhos os restos de treva. Por agora, vou ao encontro de mim.