UM FIAPO DE MEMÓRIA
Sentado na
esplanada do café, como habitualmente nas manhãs de sábado, o meu olhar
demorou-se no som dos saltos da mulher. Dei por mim a retirar do fundo da
memória uma fotografia desfocada, tirada a contraluz. Há quanto tempo não
pensava nela? Uma eternidade de vazios, certamente.
As mulheres
apaixonam-se precisamente pelos homens que não lhes estão destinados. Eu não
lhe estava destinado, mas ela insistiu - repito: insistiu! – em apaixonar-se
por mim. Tal persistência não me iliba de responsabilidade, mas de culpa sim.
As relações
mal definidas são, aliás, quase indestrutíveis. Em vez de falarmos de amor,
falávamos sobre o amor, enganando com a ajuda de palavras uma inquietação que
deveríamos ter resolvido com atos.
A princípio
desconfiada e relutante, a partir de certa altura foi ela que passou a conduzir
o jogo. Forte, cerrado, de fêmea convicta. Não era mais capaz de não ser mulher.
Cada centímetro do seu corpo gritava um desejo no qual a alma estava ainda mil
vezes mais interessada do que a carne. Passávamos longas horas a conversar. Ora
silêncios ora fluxos de palavras descontroladas. Em pouco tempo, a conversa
enlanguescia ou transformava-se em injúrias. Agradava-me aquela espécie de
esgrima interessante em que o meu rosto ostentava uma máscara e o dela se
apresentava nu. Ambos perpetuamente desconfiados.
Estava,
já, condenado a perder. Tornei-me incapaz de abandonar aquele álcool com que
não queria, aliás, deixar-me embriagar. Além disso, a minha atenção estava
dividida – família, amigos, trabalho, outras (várias) mulheres … -, a sua
inteira.
Como
um frémito, um momento aflorou-me aquele recanto da memória. Se a tivesse
amado, teria sido naquele preciso momento: numa simbiose perfeita, o sorriso e
o olhar num movimento de desafio mais doce do que todas as carícias. Ao meu
toque, todo o sangue dentro das suas veias se desfez em mel.
Eu não
duvidava de que pagaria penosamente por cada um dos meus erros e que a
resignação com que ela parecia aceitá-los me seria cobrada a dobrar. Tive para
com ela insolências e ternuras alternadas, apenas com o objetivo de me
comprazer em fazê-la amar e sofrer mais. O meu procedimento para com ela era
tornou-se cada vez menos censurável, mas é-se sempre punido fora de tempo. Pode-se
confiar no fogo, desde que se saiba que a sua lei é morrer ou queimar.
Depois de
se exasperar, cansada daquilo que tomava por falta de inteligência minha – como
poderia eu não a amar?! -, cansou-se de uma situação em que só se deleitam os
corações quiméricos, coisa que o seu pragmatismo estava longe de permitir.
Cansou-se de mim e perdeu-nos.
Com
o tempo, saiu-me completamente da ideia. Não cheguei a pagar as minhas faltas,
porque nunca a amei. Aos poucos foi perdendo a individualidade, as emoções que
ela em mim suscitara dissolviam-se à distância na insignificante banalidade de
um amor que não pedi nem senti. Ficou-me dela uma recordação desbotada.
Ela foi um
país conquistado no qual nunca entrei.
Olá, Ana!
ResponderEliminar"Estranho" relacionamento este,que à partida já parecia condenado a não levar a lado algum - como tantas vezes na vida acontece...Pragmatismo não se sobrevive com apenas quimera e romantismo; seria quase que um milagre...
Gostei de ler!
Boa semana; um abraço
Vitor
Adenda/correcção "Não sobrevive", queria eu dizer.
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