A VIÚVA
Uma mulher ficou viúva e criou, sozinha, as quatro
filhas. Casadas as raparigas, a mulher achou que devia refazer a sua vida.
Começou, então, a procurar marido. Para não gastar dinheiro em anúncios de
jornal ou agências matrimoniais, pediu ao merceeiro do seu bairro para lhe
arranjar um bom partido. De facto, quem melhor poderia cumprir tão melindrosa
missão do que o merceeiro em cuja loja se abastecia uma pequena multidão das
mais variadas idades, profissões, personalidades? A notícia correu meio bairro
– aliás, bairro inteiro! -, mas de pretendente nada.
Um dia a mulher foi a uma excursão. Uma daquelas
viagens baratas, com almoço, panelas e colchões incluídos. Pareceu-lhe uma
excelente oportunidade para conhecer aquele que viria ocupar o lugar do seu
defunto marido, tanto na mesa como na cama. E assim foi. Quis o destino que,
depois uma fastidiosa manhã a ouvir falar das maravilhas da panela cujo vapor
lhe cozinharia os legumes sem gota de água, se sentasse, ao seu lado, durante o
almoço, aquele garboso homem. Alto, o cabelo preto, ondulado, de carnes ainda
rijas e viúvo, com algo de seu e a precisar de mulher que lhe passajasse as
meias e lhe limpasse a casa, pendeu-lhe, também a ele, o olho para a viúva.
Deu-se o casório, com boda simples, e instalou-se o ex-viúvo
em casa da ex-viúva.
Vinte anos se passaram. Afinal, o algo de seu era
mesmo um quase nada e o homem só ocupou o lugar do defunto na mesa, nunca na
cama (vá-se lá saber porquê!).
Certo é que, já nos 80, o ex-viúvo começa a padecer de
um tumor na zona genital, cai à cama, é hospitalizado, sedado, picado, privado
de falas, vontades ou opiniões, sequer. Desenganado o homem pelos médicos,
passa a ex-viúva a enganar-se logo na sua condição civil, assumindo ares de
resignação e saudade pelo futuro defunto. Furtivamente, toma disposições
caseiras, familiares e sociais – deixemos os pequenos crimes de “colarinho
preto” cometidos pela nossa ex e expectante futura viúva a quem lhos facilitou
-, agendando, já, o seu futuro. Registe-se que algumas destas disposições não
obtiveram qualquer êxito. Assim, atónita por não conseguir vender o minúsculo
património do ainda seu marido, herança da defunta, resolve a nossa ex futura
expectante viúva fazer o futuro defunto viajar desta para melhor de forma
condigna. E vai de mandar restaurar o jazigo de família (a do futuro defunto,
claro). No cemitério, autorização para a obra, algumas palavras de conforto “Faz
bem pensar em tudo com antecedência. Há que respeitar os mortos, mesmo que
ainda estejam vivos.”. Em poucos dias, paredes pintadas de branco, porta
desenferrujada, prateleiras novas, tudo limpinho e arejado, pronto para receber
o já tão chorado marido. No bairro, palmadinhas nas costas, rostos compungidos,
“Pobre senhora, coitadinha, que situação esta, ter de chorar um morto que ainda
não o é, mas há de ser!”.
Há dias encontrei o casal numa rua do meu bairro. Ele
mais magro, a cabeleira sempre farta e ondulada, de fato e gravata, passo lesto
e sorriso irónico na comissura dos lábios. Ela, um pouco mais atrás,
ligeiramente curvada, acabrunhada, de olhos no chão, caminhava penosamente.
Confesso que fingi não os ver. É que a única pergunta
que me parecia pertinente era “Então e o jazigo novo … quem irá desfrutar dele??”