... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

ENTRE TEMPOS

Chovia uma chuva fina e gelada e fazia um frio de lâmina de faca. A curtos espaços de tempo, repentino, o manto de névoa caía para, dali a poucos minutos, se desvanecer numa estranha limpidez.

À espera do futuro, olhava o longe, pela janela. Deixava os olhos passearem pelos castanheiros que se erguiam altos e esguios, na sua nudez perturbante e, na distância, deixava-os vaguear por montes e vales, casarios e descampados. Continuava a conversar contigo nessas horas eternas em que conversávamos, as horas boas da minha vida.

Naquele tempo, vivia nas nuvens. Ouvia-te e pequenos ecos de luz iluminavam-me os olhos. Entre nós cada palavra tinha uma sombra. Tudo era intensidade premente.

Naquele tempo, o imaginado voo das tuas mãos adoçava o tempo.

Naquele tempo, ora trovejava em mim um mar revolto de desassossego ora deslizava um rio manso de tranquilidade.

Agora, a vida conquistou-nos para a normalidade, cavando um fosso entre nós. Como sereia chamando do abismo, desenhou-nos caminhos diferentes. Náufragos do mesmo barco, rumámos direções diferentes. Perdemo-nos.

Agora, chove-me nos olhos a tua ausência, aguadilha-se na boca este vazio.

Agora, a minha saudade tem a cor da tua voz, o cheiro do teu riso, a macieza da tua alma.


Agora, a saudade corre por dentro da distância entre nós.

domingo, 15 de novembro de 2015


 ENTRE OLHARES

Cruzaram um olhar improvável. A inesperada tepidez da noite de novembro apanhara-os ainda embriagados da melodiosa voz africana de há pouco. Ele, sozinho, um copo de martini. Ela, com os amigos, um chocolate quente. Ela, risos. Ele, sorriso do riso dela. Novo olhar, mais atento. Ela, festa vestida de estrelas. Ele, solidão. Olhar cúmplice, sorriso retribuído. Ele, puxando-a para o seu mundo. Ela, já perdida da conversa. Ele, levantando-se para acompanhar o perfume que chegara. Ela, acompanhando a festa que terminaria noutro lugar. O olhar cruzado da despedida. A certeza de que, mesmo irrepetível, a cumplicidade lhes impregnaria as almas a tempo indeterminado. E toda a vida coube naquele olhar.

sábado, 31 de outubro de 2015



A VIÚVA
Uma mulher ficou viúva e criou, sozinha, as quatro filhas. Casadas as raparigas, a mulher achou que devia refazer a sua vida. Começou, então, a procurar marido. Para não gastar dinheiro em anúncios de jornal ou agências matrimoniais, pediu ao merceeiro do seu bairro para lhe arranjar um bom partido. De facto, quem melhor poderia cumprir tão melindrosa missão do que o merceeiro em cuja loja se abastecia uma pequena multidão das mais variadas idades, profissões, personalidades? A notícia correu meio bairro – aliás, bairro inteiro! -, mas de pretendente nada.
Um dia a mulher foi a uma excursão. Uma daquelas viagens baratas, com almoço, panelas e colchões incluídos. Pareceu-lhe uma excelente oportunidade para conhecer aquele que viria ocupar o lugar do seu defunto marido, tanto na mesa como na cama. E assim foi. Quis o destino que, depois uma fastidiosa manhã a ouvir falar das maravilhas da panela cujo vapor lhe cozinharia os legumes sem gota de água, se sentasse, ao seu lado, durante o almoço, aquele garboso homem. Alto, o cabelo preto, ondulado, de carnes ainda rijas e viúvo, com algo de seu e a precisar de mulher que lhe passajasse as meias e lhe limpasse a casa, pendeu-lhe, também a ele, o olho para a viúva.
Deu-se o casório, com boda simples, e instalou-se o ex-viúvo em casa da ex-viúva.
Vinte anos se passaram. Afinal, o algo de seu era mesmo um quase nada e o homem só ocupou o lugar do defunto na mesa, nunca na cama (vá-se lá saber porquê!).
Certo é que, já nos 80, o ex-viúvo começa a padecer de um tumor na zona genital, cai à cama, é hospitalizado, sedado, picado, privado de falas, vontades ou opiniões, sequer. Desenganado o homem pelos médicos, passa a ex-viúva a enganar-se logo na sua condição civil, assumindo ares de resignação e saudade pelo futuro defunto. Furtivamente, toma disposições caseiras, familiares e sociais – deixemos os pequenos crimes de “colarinho preto” cometidos pela nossa ex e expectante futura viúva a quem lhos facilitou -, agendando, já, o seu futuro. Registe-se que algumas destas disposições não obtiveram qualquer êxito. Assim, atónita por não conseguir vender o minúsculo património do ainda seu marido, herança da defunta, resolve a nossa ex futura expectante viúva fazer o futuro defunto viajar desta para melhor de forma condigna. E vai de mandar restaurar o jazigo de família (a do futuro defunto, claro). No cemitério, autorização para a obra, algumas palavras de conforto “Faz bem pensar em tudo com antecedência. Há que respeitar os mortos, mesmo que ainda estejam vivos.”. Em poucos dias, paredes pintadas de branco, porta desenferrujada, prateleiras novas, tudo limpinho e arejado, pronto para receber o já tão chorado marido. No bairro, palmadinhas nas costas, rostos compungidos, “Pobre senhora, coitadinha, que situação esta, ter de chorar um morto que ainda não o é, mas há de ser!”.
Há dias encontrei o casal numa rua do meu bairro. Ele mais magro, a cabeleira sempre farta e ondulada, de fato e gravata, passo lesto e sorriso irónico na comissura dos lábios. Ela, um pouco mais atrás, ligeiramente curvada, acabrunhada, de olhos no chão, caminhava penosamente.
Confesso que fingi não os ver. É que a única pergunta que me parecia pertinente era “Então e o jazigo novo … quem irá desfrutar dele??”


sábado, 17 de outubro de 2015


DE AMARRAS

Prisioneira de um corpo que não reconheço, na memória do outro que já foi o meu.Ou não? Esse que foi e já não é terá sido meu? Saiu de mim, ganhou asas e partiu.

Poder ser outra. Esta aqui, aquela além, a outra, ainda, ali. Cortar amarras e ir. Simplesmente ir. Libertar-me deste invólucro que me prende, revestir a alma de outra matéria, escolher a pele, os olhos, as unhas… matéria que se coadune com o espírito.

Os meus sonhos têm o tamanho do mundo,o meu mundo o tamanho de um sonho.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


 
Quando pronuncio o teu nome, em voz baixa, corre-me uma cobrazinha pelas costas.

Ouço-te e é como se, quieta no chão, me tornasse pássaro e me lançasse a voar.

Entras com as sombras e sou amarela alegria de pintassilgo a celebrar o sol.

O vento por vestido, seda a deslizar pelo meu corpo como uma carícia.

Faço-me espuma no sal dos teus olhos.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014


A SAUDADE

A saudade é um monstro silencioso. Paciente, frio, calculista. Vive em lugares recônditos da nossa alma, sempre em constante, mas suave, movimento para escapar por entre as nossas débeis, e quase sempre vãs, tentativas de a aniquilarmos. Pérfida, insidiosa, arrasta-se, viscosa, pelos interstícios da alma …

 A saudade é um monstro ardiloso. Depois de instalada, vai-nos aguilhoando a alma devagarinho, como quem não tem pressa. Em trabalho paciente e laborioso, vai-nos mortificando até nos vencer, fazendo-nos acreditar que pode ser morta. ‘A saudade deve matar-se.’ Que ingenuidade! Quanto mais se tenta matar a saudade, mais força ela ganha. Alimenta-se da nossa dor, da mágoa, da tristeza. Quando se instala faz parar o tempo, escorre pelos olhos.

Por isso, há que a combater. Cultivar o esquecimento, esquecer devagarinho… Não lhe dar tréguas. A cada investida responder com uma nova alegria, que também um dia se transformará em saudade.

A saudade é um abraço que asfixia a alma…

sexta-feira, 22 de agosto de 2014


AS PESSOAS FELIZES LÊEM E BEBEM CAFÉ

            Um livro levezinho, apesar do tema pesado.

            Gostei muito da descrição do luto da protagonista. Até meio da história, refletimos com a personagem principal sobre a mágoa da perda e o sentido da vida. Mas, a partir daí, apresenta-se-nos uma comum história de amor e sedução. O final é surpreendente, não porque seja extraordinário, mas porque a caracterização psicológica que vinha a ser feita da protagonista a encaminhava, claramente, na direção oposta à que lhe foi dada.