É noite em mim. A chuva molha-me, gelada,
incessante, ritmada. Os trovões ribombam na minha cabeça. Os relâmpagos entram
pelos dedos dos meus pés e sobem pelo meu corpo, queimando-me as entranhas. É
noite em mim. O negrume envolve-me como um manto angustiante. Asas negras de
aves negras abraçando uma alma negra. A sensação da chuva gélida penetra na
minha pele, aperta-me a carne, difunde-se pelos ossos, apaga o incêndio dos
relâmpagos, gela-me a alma.
*
E o sol fora de mim. O calor sufoca as mulheres
nos seus vestidos de seda, minúsculos, os homens nas suas calças e camisas
claras e até as crianças que tinham sido autorizadas a brincarem na piscina. A
festa está animada. Doces, salgados e bebidas exóticas combinam em cores e
sabores com a efusividade dos convivas. Não os detesto. Não os odeio. Não os
invejo, sequer. Já lhes pertenci. Ou, pelo menos, tive a ilusão de lhes
pertencer. Quando percebi que não passava de ilusão, que não podia juntar-me a
eles nem vencê-los, decidi vencer-me a mim própria.
Passar despercebida – já que o sonho da
invisibilidade sei-o irreal.
Gosto de festas. É muito mais fácil não chamar a
atenção. Permitem-me viajar para dentro de mim sem que ninguém se aperceba da
minha presença, da minha solidão. E se alguém, inadvertidamente, repara em mim
ou me dirige a palavra, tenho o treino suficiente para dar uma quase -
resposta, com um quase - sorriso, e rastejar, de novo, para dentro de mim,
sorrateiramente. Trata-se de uma táctica desenvolvida e aperfeiçoada, com
grande perseverança, ao longo de muitos anos. A princípio, o meu sorriso era
amarelo e tinha dificuldade em esconder a dor que os outros me infligiam. Mas,
a pouco e pouco, e com vontade férrea, fui conseguindo disfarçar, fingir,
responder o que era expectável e começar a construir a minha casa dentro de
mim. Fui tão empenhada que consegui chegar a este patamar de perfeição onde me
encontro: quando sou confrontada, rodo o botão da indiferença e, tranquilamente,
regresso a “casa”, eliminando até os ecos das vozes alheias. É claro que a quantidade e qualidade das
dores infligidas pelos outros tiveram uma quota-parte significativa no
aperfeiçoamento desta técnica.
*
É noite
lá fora. E em mim. A minha “casa” alargou-se ao meu quarto. Reconforta-me a dor
que as paredes me transmitem. A estas nada posso confessar. Absorveram os
gritos, as zangas, os insultos, as humilhações. Nem elas lhes resistiram. Cada
grito tem um rosto, mas misturam-se, confundem-se até já não se saber a quem
pertencem. Nem importa. Cumprem a sua missão de fazer doer. É tudo.
Aqui, no escuro, sentada na minha cama, fixando
o vazio, sei que mantenho, ainda, a minha sanidade mental. Sei que não vou
conseguir dormir. O dia foi cansativo. Viajar para dentro de mim e manter-me,
ainda assim, alerta quanto à possibilidade de um confronto, desgasta-me. Em
dias assim sei que não consigo dormir. Resisto, no entanto, aos comprimidos.
Sei que no dia em que começar não pararei. Ou que será o fim. Nunca tinha
pensado na minha morte. No entanto, ultimamente, essa ideia tem-me feito
companhia. Vou-a acarinhando como uma presença reconfortante. O nada. Alguns
comprimidos e pufff!!! Nada de confrontos, de dores, de viagens. Nada mais que
o vazio. Tenho plena consciência de que me encontro na ténue e frágil linha
entre a loucura e a sanidade, entre a vida e a morte. Ainda tudo é possível.
Tudo menos continuar aqui. Tudo menos continuar a ser o cofre onde todos
guardam as suas culpas, os seus rancores, as suas mágoas, as suas frustrações.
Um cofre aberto onde os outros encontram sempre espaço para encerrarem mais uma
dor.
Partir seria bom. E possível. Abrir o cofre,
qual caixa de Pandora, e deixar sair todas as dores. Vê-las esvoaçar como
loucas, tontas de liberdade, ébrias de espaço. Sabê-las buscando os algozes que
as haviam encerrado em mim, mas, memórias doloridas, confundindo-se, criando o
caos. E eu … livre! Livre de tempo, de espaço, de dor.
Partir é urgente. Partir de mim, vencer-me.
A noite adensa-se fora de mim. Esforço-me por
não me deixar perder nela. Sinto-me perto do fim. A linha fragiliza-se e
fragiliza-me. Viajo nas minhas memórias. Sinto todas as dores passadas e
presentes. Cada uma volta a queimar-me como ferida lancinante, insuportável.
Partir é possível. Partir é urgente. O nada …
*
O aeroporto amanhece cinzento e húmido. Sempre
gostei de aeroportos. Agrada-me a ideia da partida. E a do anonimato.
A avaliar pelos olhares que os outros me deitam
devo apresentar um aspecto pavoroso. Sinto os olhos vermelhos, a pele pálida, o
cabelo desgrenhado. A velha mochila leva apenas duas mudas de roupa interior,
uma camisa, um par de calças e um casaco quente. Dirijo-me ao guichet e,
perante o olhar estupefacto da funcionária, peço:
- Um bilhete para o próximo avião que sair do
aeroporto, não importa o destino.
"Viagem(ns)" na noite ou... à volta da partida, invisível (real só como sonho, no mais utopia...) ou, ainda (não 'tá fácil, nem era suposto, acho eu, o comentário ou, ainda menos, a conversa no "escuro do dentro de si"!) viagem com volta, à partida...
ResponderEliminarEstá já um pouco escuro por aqui, também, acho que terei de repetir esta "Viagem" com um pouco mais de luz: MERECE!
Beijinho e bom fim de semana