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domingo, 9 de outubro de 2011

TEMPESTADE OCULTA


A manhã, apesar de já tardia, apresentava-se cinzenta. Um céu opressivo de nuvens prenunciava a tempestade que, a partir do fim da tarde, haveria de abater-se sobre a cidade. Talvez por isso, e por o outono ir já adiantado, havia poucos turistas por ali e menos ainda na esplanada.

O casal aproximava-se tranquilamente. Caminhavam lado a lado, sem se tocarem, mas a indiferença era apenas aparente. Pressentia-se a intimidade que partilhavam pela forma como dirigiam os passos para o mesmo destino ou como olhavam, distraidamente, para os mesmos locais.

Sentaram-se numa mesa junto ao varandim. Dali a vista era magnífica. Dos lados, as ruas da cidade subiam, num esforço inglório, até às montanhas que se erguiam densas e misteriosas. Em frente, o mar agitava-se em ondas alterosas que afastavam da praia até os turistas mais audazes.

Era um casal estranho. Não de uma estranheza óbvia, que saltasse à vista. Mas havia ali qualquer coisa que não passou despercebida ao meu olhar fotográfico habituado a captar almas.

O homem, perto dos sessenta anos, tinha aquele ar decidido e seguro de quem vivera, plenamente, tudo o que era possível. Pediu um café e lia, atentamente, o jornal.

A mulher era nitidamente mais jovem, provavelmente na casa dos quarenta. Discretamente elegante, tinha um ar ausente, nostálgico. Pediu uma água, enquanto lia uma revista.

Ele já teria, provavelmente, plantado uma árvore, feito um filho e escrito um livro. Ela teria tudo ainda por fazer.

O barulho de uma onda mais bravia obrigou-os a levantar os olhos e ficaram, em silêncio, a admirar aquele espetáculo magnífico. Ele pegou-lhe na mão e foi como se passassem entre eles os relâmpagos que apenas se avizinhavam.
Não resisti. Levantei-me da mesa e afastei-me para os fotografar ao longe.

*
 
Apesar da instabilidade do tempo, o hotel ainda servia os almoços no pequeno coreto, situado nas traseiras do edifício, e que havia sido restaurado para o efeito, tendo sido rodeado de janelas envidraçadas que se fechavam quando o frio se fazia sentir. Por ficar à beira de um precipício permitia avistar a imensidão daquele mar que se agitava à medida que o dia passava.

Para além da mesa de Margarida e António, outras três se encontravam ocupadas.

Mas, o casal, apesar de cumprimentar, amavelmente, todos os hóspedes, também preferia manter alguma distância dos demais, afim de melhor poder desfrutar da intimidade que aqueles dias lhe estavam a proporcionar.

Terminado o almoço, subiram ao quarto para descansarem.
 
*

Margarida levantou os olhos do livro e fixou-os no homem que dormia tranquilo. Gostava dele. Decididamente, gostava muito daquele homem. Observou-o durante alguns minutos e, fazendo o menor ruído possível, foi deitar-se ao seu lado. Lentamente, meteu a mão por baixo da t-shirt dele e sentiu-lhe o corpo quente. Acariciou-lhe as costas com suavidade e não resistiu a enlaçá-lo, afagando-lhe o peito, os ombros. António despertou do sono, que nem era profundo, mas deixou-se ficar como estava. Sabia que ela gostava de desfrutar do corpo dele com calma, cheirá-lo, olhá-lo, tocá-lo. A mão dela desceu até ao sexo dele e começou a acariciá-lo. Era o momento de se virar e cuidar dela. Gostavam de fazer amor um com o outro. Apesar das diferenças de personalidades e, consequentemente, de comportamentos, ambos tinham conseguido encontrar um equilíbrio que lhes permitia amarem-se plenamente. Mesmo na intimidade física ele mantinha uma atitude firme e determinada, dedicando-lhe uma atenção inexcedível, cobrindo-a de mimos e cuidados. Ela era mais impetuosa e tinha, por vezes, dificuldades em refrear a impulsividade que a caracterizava. Iam-se aprendendo mutuamente. E, apesar de em público parecerem até um pouco indiferentes, procuravam estar a sós o máximo de tempo possível porque sentiam verdadeiro prazer nessa intimidade.

O banho quente, tomado a dois, revigorou-os e decidiram sair para darem uma volta pela beira-mar.

*
 
Aquele fim de tarde vinha a anunciar-se tempestuoso desde o início do dia. Estranhamente, o vento, que soprava gélido pelas ruas da vila, não se fazia sentir ali à beira-mar. No entanto, as nuvens adensavam-se num céu que parecia querer fechar-se sobre um mar negro, revolto e ruidoso. Margarida e António estavam parados, como que hipnotizados, perante aquele espetáculo da Natureza que parecia querer engoli-los. Era como se a pequenez de ambos, naquele momento, os fizesse sentir mais próximos um do outro.

O perigo iminente das ondas endemoninhadas e os trovões que pareciam querer rasgar toda a terra afastaram-nos da praia. De mãos dadas, caminharam, apressadamente, pelas ruas da vila até chegarem ao pequeno hotel onde, apesar da tempestade que já se iniciara lá fora, se sentiram em segurança.

Os outros hóspedes já se encontravam todos na sala de jantar. Margarida e António subiram ao quarto para se prepararem e, quando desceram, a tempestade agravara-se, consideravelmente.

O ambiente parecia tenso. Tanto os dois empregados que serviam à mesa como os hóspedes pareciam nervosos. Copos, pratos e talheres agitavam-se com um ruído fora do habitual. As portadas das janelas batiam com força. O som dos trovões aumentava lá fora e um relâmpago iluminou a sala que, repentinamente, escurecera.

Perante a evidente falta de eletricidade numa noite medonha como aquela, todos se levantaram, o que causou algum pânico. No entanto, saído não se sabe de onde, António surgiu com um candeeiro a petróleo na mão. A luz mal iluminava uns escassos metros à volta do homem, mas foi o suficiente para acalmar, minimamente, todos os que se encontravam na sala e juntá-los, como borboletas rodeando a luz.

O que se passou a seguir parece, hoje, à distância da escuridão e do medo, completamente absurdo. A história poderia ter continuado sem grandes sobressaltos. Tratava-se, apenas, de uma noite de tempestade em que a falta de eletricidade não traria outros incómodos além de alguma dificuldade de orientação dentro do hotel, a falta de aquecimento e uma ida para a cama antecipada. No entanto …

António pareceu tomar aquela decisão no momento, mas de uma forma intrigantemente séria. Era como se o destino não lhe deixasse alternativa. Informou que ia à vila tratar do problema da eletricidade. A noite estava tenebrosa e, mesmo que conseguisse chegar à vila em segurança, ninguém poderia ajudá-lo. Apesar disso, todos consideraram normal aquela decisão.

Menos Margarida. Ao lado de António, e apesar de não tentar impedi-lo, parecia viver dentro de si uma tempestade bem mais forte do que a que se ouvia lá fora. Deu-lhe a mão que ele apertou com convicção e acariciou com suavidade antes de a largar sem olhar para a mulher.
António dirigiu-se para a porta, sempre com o candeeiro na mão, e o grupo juntou-se à sua volta. Os olhos do casal procuraram-se e despediram-se. Subitamente todos pareceram aperceber-se de que alguma coisa séria se passava entre os dois. Mas a noite, a tempestade, a escuridão, o medo impediram-nos de aprofundarem essa sensação. Lenta, mas decididamente, António pousou o candeeiro num móvel próximo e saiu. Hóspedes e empregados dirigiram-se, como puderam, aos respetivos aposentos.

Se a luz fosse mais intensa ter-se-ia percebido a palidez de Margarida …
 
*

Na manhã seguinte, a azáfama imperava, no hotel. Os estragos exteriores eram consideráveis e, mesmo dentro do antigo palácio, cada um organizava o que até nem se tinha desorganizado. Margarida permanecia, estranhamente, sentada num banco, perto de uma janela. A certa altura, levantou-se e ficou completamente rígida ao mesmo tempo que, pela porta principal, entravam dois homens fardados.

Em poucos minutos todos se reuniram na sala de estar e ficaram a saber o que tinha acontecido. Ninguém tinha dado pela ausência de António, mas os documentos, ainda molhados, e alguns objetos pessoais, que se encontravam na posse dos dois agentes da polícia, não deixaram dúvidas quanto à identidade do cadáver encontrado, manhã cedo, preso num penhasco. O corpo já havia sido retirado e encontrava-se, pronto para reconhecimento, na morgue da vila. Os homens só não conseguiam explicar como é que os documentos e os objetos pessoais estavam espalhados de forma a facilmente serem encontrados.

Margarida pediu aos agentes que aguardassem e, calmamente, subiu ao quarto de onde desceu, poucos minutos depois, com as bagagens do casal. Não contava voltar ao hotel. Despediu-se de todos, ignorando a consternação geral, e não voltámos a vê-la.

*
 
 A chuva caía lá fora. Contínua, miúda, húmida. Era uma daquelas tardes de janeiro, tristes, cinzentas, típicas do pós-festas. As ruas já não estavam decoradas, tudo parecia mais pobre sem os enfeites de Natal. As poucas pessoas que se atreviam a passar pela frente do café fixavam o chão de cimento polido que, naquela zona, substituía a calçada portuguesa. Passavam acabrunhadas, de ar carregado como se a pressa de chegarem onde quer que fossem fizesse chegar rapidamente o sol e o calor.

Observava tudo isto da sala do fundo do café. Um chá de jasmim, uma torrada e um pastel de Stª Clara. Como me tinha habituado há muitos anos naquele café central da cidade onde tinha estudado e à qual voltava ciclicamente. O espaço mantivera-se igual ao longo dos anos. Duas montras, uma mais larga que outra, que expunham os bolos de todos os tamanhos e feitios, um corredor largo ao longo do qual corriam, do lado direito, uma fila de mesas e, do lado esquerdo, o balcão. Ao fundo, a sala que sempre me fascinara. Calma, tranquila, quase um recanto mal iluminado.

Reconheci-a mal entrou. A mesma elegância discreta e o mesmo ar de quem ainda espera tudo da vida, mas também a mesma dor no olhar que lhe percebi da última vez que a tinha visto, há dois meses atrás, saindo do hotel para reconhecer o corpo do companheiro. Hesitou durante dois segundos, quando me viu. Mas, rapidamente se recompôs e dirigiu-se a mim. Sorriso perfeito, sem efusividade, mas sincero. Sentou-se na minha mesa e pediu um chá e um éclair. Pensei que o éclair lhe ficava bem.

Desde há dois meses atrás que não conseguia deixar de pensar no que acontecera naquela noite. Houvera ali algo estranho que eu não conseguira perceber. Sabia, no entanto, que não podia ser direta, pois, à menor inconveniência da minha parte, a mulher levantar-se-ia e ir-se-ia embora. Daí a minha estupefação quando foi ela própria a abordar o assunto, quase abruptamente.

- Você foi a única pessoa que percebeu que algo se passava. Está curiosíssima, porque não faz a menor ideia do que aconteceu, não é verdade? Mas, para perceber a verdadeira dimensão da tragédia daquela noite, terá de conhecer a nossa história. Tem tempo? Tem … - hesitou uns segundos – um saco de lágrimas interior? Está proibida de chorar aqui!
 
*

Tinham-se conhecido há três anos, através de amigos comuns, e algumas semanas depois já viviam juntos. Porque os defeitos de um encaixavam, na perfeição, nas virtudes do outro, a vida em comum decorria com o conforto que ambos desejavam num amor sólido.

No entanto, o cansaço dele, de início atribuído à vida ainda bastante ativa que levava, rapidamente deixou perceber um diagnóstico fatal. Era uma questão de tempo. E de força de vontade para suportar os tratamentos, diziam os médicos. Para ele era apenas uma questão de saber onde, como e quando. Apesar de, a princípio, ainda o ter tentado dissuadir daquela ideia, Margarida comportou-se como sempre havia feito: incondicionalmente do lado dele.

Assim, procuraram o lugar onde ele se despediria da vida da mesma forma que haviam procurado, anteriormente, destinos de férias. Ele queria um lugar distante de casa, tranquilo e onde ela pudesse dar prosseguimento aos trâmites legais sem grandes sobressaltos. Dessa forma não haveria perguntas, constrangimentos ou o eterno prolongamento de dúvidas. Acima de tudo, António queria passar os últimos momentos com ela, mas poupá-la ao sofrimento possível.

A pequena praia, calma e distante, apresentou-se como a melhor escolha. Quando partiram não sabiam como iria acontecer. Ele fazia questão disso. Os últimos momentos seriam da sua privacidade. Nem ela os presenciaria. Partiria só.

Quando, naquela noite de tempestade, se propôs descer à vila, fê-lo na convicção de que esse seria o melhor momento. Ela não poderia vacilar, pedindo-lhe que recuasse na sua determinação e estaria acompanhada.

Despediram-se naquele olhar cheio de tudo o que tornara possível que aquele amor os tivesse levado, juntos, àquela situação.

*

No dia seguinte enviei-lhe as fotografias que lhes tinha tirado naqueles dias. Os negativos também. Parecia-me obsceno olhar para a intimidade dos últimos momentos que ambos tinham passado juntos. Aquela história não me pertencia.

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