A
manhã, apesar de já tardia, apresentava-se cinzenta. Um céu opressivo de nuvens
prenunciava a tempestade que, a partir do fim da tarde, haveria de abater-se
sobre a cidade. Talvez por isso, e por o outono ir já adiantado, havia poucos
turistas por ali e menos ainda na esplanada.
O
casal aproximava-se tranquilamente. Caminhavam lado a lado, sem se tocarem, mas
a indiferença era apenas aparente. Pressentia-se a intimidade que partilhavam
pela forma como dirigiam os passos para o mesmo destino ou como olhavam,
distraidamente, para os mesmos locais.
Sentaram-se
numa mesa junto ao varandim. Dali a vista era magnífica. Dos lados, as ruas da
cidade subiam, num esforço inglório, até às montanhas que se erguiam densas e
misteriosas. Em frente, o mar agitava-se em ondas alterosas que afastavam da
praia até os turistas mais audazes.
Era
um casal estranho. Não de uma estranheza óbvia, que saltasse à vista. Mas havia
ali qualquer coisa que não passou despercebida ao meu olhar fotográfico
habituado a captar almas.
O
homem, perto dos sessenta anos, tinha aquele ar decidido e seguro de quem
vivera, plenamente, tudo o que era possível. Pediu um café e lia, atentamente,
o jornal.
A
mulher era nitidamente mais jovem, provavelmente na casa dos quarenta.
Discretamente elegante, tinha um ar ausente, nostálgico. Pediu uma água,
enquanto lia uma revista.
Ele
já teria, provavelmente, plantado uma árvore, feito um filho e escrito um
livro. Ela teria tudo ainda por fazer.
O
barulho de uma onda mais bravia obrigou-os a levantar os olhos e ficaram, em
silêncio, a admirar aquele espetáculo magnífico. Ele pegou-lhe na mão e foi
como se passassem entre eles os relâmpagos que apenas se avizinhavam.
Não
resisti. Levantei-me da mesa e afastei-me para os fotografar ao longe.
*
Apesar
da instabilidade do tempo, o hotel ainda servia os almoços no pequeno coreto,
situado nas traseiras do edifício, e que havia sido restaurado para o efeito,
tendo sido rodeado de janelas envidraçadas que se fechavam quando o frio se
fazia sentir. Por ficar à beira de um precipício permitia avistar a imensidão
daquele mar que se agitava à medida que o dia passava.
Para
além da mesa de Margarida e António, outras três se encontravam ocupadas.
Mas,
o casal, apesar de cumprimentar, amavelmente, todos os hóspedes, também
preferia manter alguma distância dos demais, afim de melhor poder desfrutar da
intimidade que aqueles dias lhe estavam a proporcionar.
Terminado
o almoço, subiram ao quarto para descansarem.
*
Margarida
levantou os olhos do livro e fixou-os no homem que dormia tranquilo. Gostava
dele. Decididamente, gostava muito daquele homem. Observou-o durante alguns
minutos e, fazendo o menor ruído possível, foi deitar-se ao seu lado.
Lentamente, meteu a mão por baixo da t-shirt dele e sentiu-lhe o corpo quente.
Acariciou-lhe as costas com suavidade e não resistiu a enlaçá-lo, afagando-lhe
o peito, os ombros. António despertou do sono, que nem era profundo, mas
deixou-se ficar como estava. Sabia que ela gostava de desfrutar do corpo dele
com calma, cheirá-lo, olhá-lo, tocá-lo. A mão dela desceu até ao sexo dele e
começou a acariciá-lo. Era o momento de se virar e cuidar dela. Gostavam de
fazer amor um com o outro. Apesar das diferenças de personalidades e,
consequentemente, de comportamentos, ambos tinham conseguido encontrar um
equilíbrio que lhes permitia amarem-se plenamente. Mesmo na intimidade física
ele mantinha uma atitude firme e determinada, dedicando-lhe uma atenção
inexcedível, cobrindo-a de mimos e cuidados. Ela era mais impetuosa e tinha,
por vezes, dificuldades em refrear a impulsividade que a caracterizava. Iam-se
aprendendo mutuamente. E, apesar de em público parecerem até um pouco
indiferentes, procuravam estar a sós o máximo de tempo possível porque sentiam
verdadeiro prazer nessa intimidade.
O
banho quente, tomado a dois, revigorou-os e decidiram sair para darem uma volta
pela beira-mar.
*
Aquele
fim de tarde vinha a anunciar-se tempestuoso desde o início do dia.
Estranhamente, o vento, que soprava gélido pelas ruas da vila, não se fazia
sentir ali à beira-mar. No entanto, as nuvens adensavam-se num céu que parecia
querer fechar-se sobre um mar negro, revolto e ruidoso. Margarida e António
estavam parados, como que hipnotizados, perante aquele espetáculo da Natureza
que parecia querer engoli-los. Era como se a pequenez de ambos, naquele
momento, os fizesse sentir mais próximos um do outro.
O
perigo iminente das ondas endemoninhadas e os trovões que pareciam querer
rasgar toda a terra afastaram-nos da praia. De mãos dadas, caminharam,
apressadamente, pelas ruas da vila até chegarem ao pequeno hotel onde, apesar
da tempestade que já se iniciara lá fora, se sentiram em segurança.
Os
outros hóspedes já se encontravam todos na sala de jantar. Margarida e António
subiram ao quarto para se prepararem e, quando desceram, a tempestade
agravara-se, consideravelmente.
O
ambiente parecia tenso. Tanto os dois empregados que serviam à mesa como os
hóspedes pareciam nervosos. Copos, pratos e talheres agitavam-se com um ruído
fora do habitual. As portadas das janelas batiam com força. O som dos trovões
aumentava lá fora e um relâmpago iluminou a sala que, repentinamente, escurecera.
Perante
a evidente falta de eletricidade numa noite medonha como aquela, todos se
levantaram, o que causou algum pânico. No entanto, saído não se sabe de onde,
António surgiu com um candeeiro a petróleo na mão. A luz mal iluminava uns
escassos metros à volta do homem, mas foi o suficiente para acalmar,
minimamente, todos os que se encontravam na sala e juntá-los, como borboletas
rodeando a luz.
O
que se passou a seguir parece, hoje, à distância da escuridão e do medo,
completamente absurdo. A história poderia ter continuado sem grandes
sobressaltos. Tratava-se, apenas, de uma noite de tempestade em que a falta de
eletricidade não traria outros incómodos além de alguma dificuldade de
orientação dentro do hotel, a falta de aquecimento e uma ida para a cama
antecipada. No entanto …
António
pareceu tomar aquela decisão no momento, mas de uma forma intrigantemente
séria. Era como se o destino não lhe deixasse alternativa. Informou que ia à
vila tratar do problema da eletricidade. A noite estava tenebrosa e, mesmo que
conseguisse chegar à vila em segurança, ninguém poderia ajudá-lo. Apesar disso,
todos consideraram normal aquela decisão.
Menos
Margarida. Ao lado de António, e apesar de não tentar impedi-lo, parecia viver
dentro de si uma tempestade bem mais forte do que a que se ouvia lá fora.
Deu-lhe a mão que ele apertou com convicção e acariciou com suavidade antes de
a largar sem olhar para a mulher.
António
dirigiu-se para a porta, sempre com o candeeiro na mão, e o grupo juntou-se à
sua volta. Os olhos do casal procuraram-se e despediram-se. Subitamente todos
pareceram aperceber-se de que alguma coisa séria se passava entre os dois. Mas
a noite, a tempestade, a escuridão, o medo impediram-nos de aprofundarem essa
sensação. Lenta, mas decididamente, António pousou o candeeiro num móvel
próximo e saiu. Hóspedes e empregados dirigiram-se, como puderam, aos
respetivos aposentos.
Se
a luz fosse mais intensa ter-se-ia percebido a palidez de Margarida …
*
Em
poucos minutos todos se reuniram na sala de estar e ficaram a saber o que tinha
acontecido. Ninguém tinha dado pela ausência de António, mas os documentos, ainda
molhados, e alguns objetos pessoais, que se encontravam na posse dos dois
agentes da polícia, não deixaram dúvidas quanto à identidade do cadáver
encontrado, manhã cedo, preso num penhasco. O corpo já havia sido retirado e
encontrava-se, pronto para reconhecimento, na morgue da vila. Os homens só não
conseguiam explicar como é que os documentos e os objetos pessoais estavam
espalhados de forma a facilmente serem encontrados.
Margarida
pediu aos agentes que aguardassem e, calmamente, subiu ao quarto de onde
desceu, poucos minutos depois, com as bagagens do casal. Não contava voltar ao
hotel. Despediu-se de todos, ignorando a consternação geral, e não voltámos a
vê-la.
*
A chuva caía lá fora. Contínua, miúda, húmida.
Era uma daquelas tardes de janeiro, tristes, cinzentas, típicas do pós-festas.
As ruas já não estavam decoradas, tudo parecia mais pobre sem os enfeites de
Natal. As poucas pessoas que se atreviam a passar pela frente do café fixavam o
chão de cimento polido que, naquela zona, substituía a calçada portuguesa.
Passavam acabrunhadas, de ar carregado como se a pressa de chegarem onde quer
que fossem fizesse chegar rapidamente o sol e o calor.
Observava
tudo isto da sala do fundo do café. Um chá de jasmim, uma torrada e um pastel
de Stª Clara. Como me tinha habituado há muitos anos naquele café central da
cidade onde tinha estudado e à qual voltava ciclicamente. O espaço mantivera-se
igual ao longo dos anos. Duas montras, uma mais larga que outra, que expunham
os bolos de todos os tamanhos e feitios, um corredor largo ao longo do qual
corriam, do lado direito, uma fila de mesas e, do lado esquerdo, o balcão. Ao
fundo, a sala que sempre me fascinara. Calma, tranquila, quase um recanto mal
iluminado.
Reconheci-a
mal entrou. A mesma elegância discreta e o mesmo ar de quem ainda espera tudo
da vida, mas também a mesma dor no olhar que lhe percebi da última vez que a
tinha visto, há dois meses atrás, saindo do hotel para reconhecer o corpo do
companheiro. Hesitou durante dois segundos, quando me viu. Mas, rapidamente se
recompôs e dirigiu-se a mim. Sorriso perfeito, sem efusividade, mas sincero.
Sentou-se na minha mesa e pediu um chá e um éclair. Pensei que o éclair lhe
ficava bem.
Desde
há dois meses atrás que não conseguia deixar de pensar no que acontecera
naquela noite. Houvera ali algo estranho que eu não conseguira perceber. Sabia,
no entanto, que não podia ser direta, pois, à menor inconveniência da minha
parte, a mulher levantar-se-ia e ir-se-ia embora. Daí a minha estupefação
quando foi ela própria a abordar o assunto, quase abruptamente.
-
Você foi a única pessoa que percebeu que algo se passava. Está curiosíssima,
porque não faz a menor ideia do que aconteceu, não é verdade? Mas, para
perceber a verdadeira dimensão da tragédia daquela noite, terá de conhecer a
nossa história. Tem tempo? Tem … - hesitou uns segundos – um saco de lágrimas
interior? Está proibida de chorar aqui!
*
Tinham-se
conhecido há três anos, através de amigos comuns, e algumas semanas depois já
viviam juntos. Porque os defeitos de um encaixavam, na perfeição, nas virtudes
do outro, a vida em comum decorria com o conforto que ambos desejavam num amor
sólido.
No
entanto, o cansaço dele, de início atribuído à vida ainda bastante ativa que
levava, rapidamente deixou perceber um diagnóstico fatal. Era uma questão de
tempo. E de força de vontade para suportar os tratamentos, diziam os médicos.
Para ele era apenas uma questão de saber onde, como e quando. Apesar de, a
princípio, ainda o ter tentado dissuadir daquela ideia, Margarida comportou-se
como sempre havia feito: incondicionalmente do lado dele.
Assim,
procuraram o lugar onde ele se despediria da vida da mesma forma que haviam
procurado, anteriormente, destinos de férias. Ele queria um lugar distante de casa,
tranquilo e onde ela pudesse dar prosseguimento aos trâmites legais sem grandes
sobressaltos. Dessa forma não haveria perguntas, constrangimentos ou o eterno
prolongamento de dúvidas. Acima de tudo, António queria passar os últimos
momentos com ela, mas poupá-la ao sofrimento possível.
A
pequena praia, calma e distante, apresentou-se como a melhor escolha. Quando
partiram não sabiam como iria acontecer. Ele fazia questão disso. Os últimos
momentos seriam da sua privacidade. Nem ela os presenciaria. Partiria só.
Quando,
naquela noite de tempestade, se propôs descer à vila, fê-lo na convicção de que
esse seria o melhor momento. Ela não poderia vacilar, pedindo-lhe que recuasse
na sua determinação e estaria acompanhada.
Despediram-se
naquele olhar cheio de tudo o que tornara possível que aquele amor os tivesse
levado, juntos, àquela situação.
*
No
dia seguinte enviei-lhe as fotografias que lhes tinha tirado naqueles dias. Os
negativos também. Parecia-me obsceno olhar para a intimidade dos últimos
momentos que ambos tinham passado juntos. Aquela história não me pertencia.
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