EM TEMPO PARADO
Andam-me os
pensamentos por longe nestas horas maldosas de mim. Deitei-me com cuidado, em
lençóis de mar, à espera de ser feliz. Mas deitarmo-nos assim é o reverso do
abandono. Por isso o meu corpo dançou na agitação dos terrores escondidos do
dia. Acordei o sono e esperei o sonho impensado. Porém, o tempo, implacável,
parou como relógio sem corda, trazendo um vazio desencaminhado. Cedi.
Levantei-me em pedaços, pequenos fragmentos quase impercetivelmente unidos.
Deambulei num presente exíguo no tempo de um sopro que me pareceu eterno. Pouco
tempo é muito quando o vazio pesa uma vida.
O espelho …
Quase reconheço o meu rosto por detrás de um véu azul. (Sou azul, dizem.) Nas
maçãs do rosto o brilho dos sorrisos vivenciados, nos olhos as alegrias
compartilhadas, nos lábios o som das palavras doces como mel. Sinto ali, de
novo, o tempo de rir, de abraçar, de ter. Estranhamente o meu rosto no espelho
não devolve a minha surpresa. Na obscuridade um novo rosto começa a
delinear-se. Vagamente familiar, mas quase disforme. Nas maçãs do rosto
cicatrizes de deceções vividas, nos olhos marcas de feridas mal cicatrizadas,
nos lábios o som das palavras amargas. Perscruto-lhe os detalhes para procurar
no fundo da memória o reconhecimento. Mas o rosto pouco mais é do que o defeito
de um espelho gasto e sujo que deforma a visão. Sinto ali o tempo de chorar, de
afastar, de perder. Arrepia-me a estranheza do olhar que me devolve.
Naturalmente os rostos aproximam-se um do
outro e diluem-se, misturando alegrias e mágoas, risos e choros, tempos de luz
e de trevas. Parada neste tempo morto, reconheço, finalmente, o meu rosto.
Miscelânea de tempos passados e presentes.
O dia de
amanhã ainda está limpo, branco, pronto a ser escrito. Amanhecerei num tempo em
que ainda haja tempo para reinventar palavras, amores, sonhos? Saberei dosear
com parcimónia o relógio das minhas pressas e dos meus vagares? A um passo do
amanhã, à espera do inesquecível…
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