... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

quinta-feira, 30 de agosto de 2012


EM TEMPO PARADO

Andam-me os pensamentos por longe nestas horas maldosas de mim. Deitei-me com cuidado, em lençóis de mar, à espera de ser feliz. Mas deitarmo-nos assim é o reverso do abandono. Por isso o meu corpo dançou na agitação dos terrores escondidos do dia. Acordei o sono e esperei o sonho impensado. Porém, o tempo, implacável, parou como relógio sem corda, trazendo um vazio desencaminhado. Cedi. Levantei-me em pedaços, pequenos fragmentos quase impercetivelmente unidos. Deambulei num presente exíguo no tempo de um sopro que me pareceu eterno. Pouco tempo é muito quando o vazio pesa uma vida.

O espelho … Quase reconheço o meu rosto por detrás de um véu azul. (Sou azul, dizem.) Nas maçãs do rosto o brilho dos sorrisos vivenciados, nos olhos as alegrias compartilhadas, nos lábios o som das palavras doces como mel. Sinto ali, de novo, o tempo de rir, de abraçar, de ter. Estranhamente o meu rosto no espelho não devolve a minha surpresa. Na obscuridade um novo rosto começa a delinear-se. Vagamente familiar, mas quase disforme. Nas maçãs do rosto cicatrizes de deceções vividas, nos olhos marcas de feridas mal cicatrizadas, nos lábios o som das palavras amargas. Perscruto-lhe os detalhes para procurar no fundo da memória o reconhecimento. Mas o rosto pouco mais é do que o defeito de um espelho gasto e sujo que deforma a visão. Sinto ali o tempo de chorar, de afastar, de perder. Arrepia-me a estranheza do olhar que me devolve. Naturalmente os rostos  aproximam-se um do outro e diluem-se, misturando alegrias e mágoas, risos e choros, tempos de luz e de trevas. Parada neste tempo morto, reconheço, finalmente, o meu rosto. Miscelânea de tempos passados e presentes.

O dia de amanhã ainda está limpo, branco, pronto a ser escrito. Amanhecerei num tempo em que ainda haja tempo para reinventar palavras, amores, sonhos? Saberei dosear com parcimónia o relógio das minhas pressas e dos meus vagares? A um passo do amanhã, à espera do inesquecível…

 

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