A VELHA
No relógio
da sala, duas e vinte da manhã. Luísa continuava a trabalhar afincadamente. As
palavras fluiam da caneta para o papel como se tivessem vida própria. As
personagens das histórias iam tomando conta dela, direcionando-a, ora num tom tranquilo,
calmo, repousante, ora em momentos de alucinantes delírios, guiando-lhe os
dedos com frenesim de tresloucamento. Era sempre mais fácil quando as
personagens eram verídicas, fantasmas do seu passado. Com essas não se atrevia
a devaneios. Respeitava-lhes os sentimentos e os comportamentos. O pior era
quando com elas mesclava seres fruto da sua imaginação. E que imaginação, a de
Luísa!
Noventa e
dois anos. Velha. Aliás, a velha. Para os filhos, as noras, a empregada, até
para o empregado da mercearia. A velha. Sabia, melhor do que eles que, durante
mais ou menos tempo, tinham sido vítimas da sua rabujice ditatorial – diria,
mesmo, das suas maldades -, que merecia aquele tipo de tratamento desprezível.
Durante toda a vida, impusera a todos um regime de autoritarismo que não
admitia resposta. Senhora de um património considerável, usara-o, sempre, como
facilitador de uma vida plenamente satisfatória. Fora esposa adúltera, mãe
castradora, sogra execrável, patroa exigente. Mas, para todos os seus defeitos
encontrara fundamentos. Não se arrependia.
Agora, com
noventa e dois anos e sem doenças graves, divertia-se continuando a enganar os
que a consideravam uma velha gagá. Durante
o dia comportava-se, de facto, como se estivesse a perder as suas faculdades mentais:
levantava-se tardíssimo, ignorando as horas estipuladas para as refeições,
fingia esquecer o que não lhe interessava lembrar, dizia o que lhe apetecia. No
entanto, continuava extraordinariamente lúcida. Assim que a empregada saía, por
volta da hora de jantar, começava o seu dia. Com a casa só para si, cozinhava o
que lhe apetecia, comia no quarto, frente à televisão, revia antigas
fotografias, joias, documentos de um passado que continuava vívido na sua
memória. E escrevia. Contava tudo aquilo de que se lembrava – e Luísa
lembrava-se de tudo! – e, quando se cansava dos que tinham povoado a sua vida,
inventava novas histórias, com novas personagens. Zelaria para que os inúmeros
cadernos pretos que continham as suas histórias fossem facilmente encontrados
depois da sua morte. Mas, até nesse momento enganaria os outros: ninguém
destrinçaria as histórias verdadeiras das inventadas! …
Olá, Ana!
ResponderEliminar“Que personagem fabulosa,esta Luísa, seja ela verdade ou ficção - ainda que de tão original, me pareça mais um acto de criação: E que apesar do seu comportamento tão mauzinho, ainda assim é fácil gostar dela, ou mesmo invejá-la, porque não…? Por ter vivido a vida à sua maneira, com um desprezo absoluto pela forma como os outros a olhavam, e sem um pingo de remorso por todos as “maldades praticadas”.E que, como prémio... ainda conseguiu chegar à bonita idade de 92 anos, escrevendo noite afora e sem mudar uma vírgula no seu comportamento, porque nele certamente nunca viu ela nada de errado. Esta personalidade Luísa é uma preciosidade.
Um belo texto!
Um abraço, e um Bom Ano.
Vitor