Ouvia, aterrada, o som que, em poucos segundos, passara de um ruído ciciante, que lhe lembrava uma broca de dentista, a um barulho estridente, ensurdecedor. A senhora da serra eléctrica, qual personagem de um filme de terror de série B, dirigia-se para eles, ostentando, estranhamente, um sorriso amistoso. Continuava a tagarelar por baixo do som atroador. Seria o fim? Mas se tudo não passara de um arrufo de namorados! Encolheu-se o mais que pôde e ouviu, então – finalmente! -, a voz dele:
- Tíbia!
Ah, pois! Agora que o fim se aproximava a dentes largos e nada mais havia a fazer é que ele se dignava falar-lhe! Tipicamente masculino!
É certo que tinha consciência de ter sido ela a causadora daquela situação. A causadora, não a responsável! O rompimento dera-se há duas semanas e meia, mas a situação arrastava-se há muito mais tempo. Não conseguia determinar quando é que ele começara a desinteressar-se dela. A verdade é que não era osso de meias-palavras, de deixar o que quer que fosse por dizer. Por isso, depois de várias insinuações e provocações, explicou-lhe que se sentia incomodada com o rumo que tinha tomado aquela relação. Namoravam há dois anos, é certo, e pressupunha-se até que os arroubos dos primeiros tempos tivessem diminuído de intensidade. Mas, como amigos tinha ela o fémur, com quem conversava diariamente, o rádio, que frequentemente se deixava dependurar para lhe dar notícias do que se passava no esqueleto, mais acima, e o tarso, que estava sempre ansioso por trocar não dois, mas vários dos seus dedos por conversas. No início, Perónio fazia-se desentendido e não respondia às provocações dela. Mas, confrontado com o pragmatismo daquele osso insistente lá foi deixando cair a ideia de que algo no comportamento da Tíbia o tinha levado àquele afastamento. Ela bem insistiu para que ele fosse claro, directo, não rodeasse a questão. Mas ele manteve-se firme naquele limbo do não-sei-se-diga, não-sei-se-conte. Ora Tíbia, osso longo e robusto, não menos duro de roer do que o casmurro Perónio, armou-se de brios e deixou bem claro que ossos adultos não deveriam comportar-se como ossinhos mimados. Se não queria esclarecer a situação, mesmo sabendo que o seu silêncio a magoava, o melhor seria separarem-se. Veria com quantas células se constrói uma tíbia! Ele manteve-se quieto. E, assim, naquela noite de Primavera anunciada, Tíbia e Perónio, com um quebrar de ossos estriduloso fracturaram-se, na disposição de se manterem de ossos voltados para sempre.
No entanto, tal proeza não era fácil de sustentar. Algumas horas depois, duas mãos envolveram-nos numa matéria branca, molhada e robusta. Condenados por três longos meses àquela prisão, com o objectivo de voltarem a juntar-se, consolidando-se, assim, para sempre, nenhum dos dois queria ceder. Durante as primeiras 48 horas resistiram o mais que puderam, mas o esforço físico necessário era demasiado intenso e, confinados ao exíguo espaço que lhes tolhia os movimentos, começaram a deixar ceder a matéria sem, contudo, se permitirem um olhar ou uma palavra. E agora ali estavam. Iam convictos de que as mesmas mãos experientes que os haviam encerrado há duas semanas e meia lhes mudassem a prisão para uma mais suave, por bom comportamento.
Os dentes de aço rasaram a prisão branca e gelada. Célula a célula, Tíbia e Perónio começaram a juntar-se. Mas já nada havia a fazer. A roda dentada estava a poucos milímetros da pele e em poucos segundos rasgaria a carne que os protegia, estraçalhando-os num ápice. Preparam-se para o fim.
Subitamente, o barulho cessou. A senhora da serra eléctrica abriu a prisão como se de uma casca de ovo se tratasse. Hidratou a pele da perna e as conhecidas mãos experientes voltaram a construir à volta de Tíbia e de Perónio uma nova prisão. Branca, mas mais leve e menos fria. Um prémio pela subtil cedência de ambos? Talvez. Tíbia e Perónio tinham, ainda, dois longos meses de cárcere forçado … e uma questão de afectos para resolver! …
Sem comentários:
Enviar um comentário