Aquele recanto do quarto encontrava-se quase na penumbra, iluminado, difusamente, pela luz das velas espalhadas pela sala. Há mais de uma hora que anoitecera. A mesa estava posta para dois. A louça da Vista Alegre, os talheres e o castiçal de prata, os cristais Strauss, a toalha de linho branco bordada. Tudo limpo e meticulosamente arrumado. Só faltavas tu. A casa esperava-te.
Pelo canto da gaveta da cómoda uma ponta de tecido preto espreitava. Na quietude do ambiente sentia-se atento. Um movimento quase imperceptível, um aroma diferente alertaram-no. Como uma serpente, silencioso e ondulante, o meu vestido preto deslizou para fora da gaveta. A seda gemeu ao roçar na madeira. Dengoso, o meu vestido preto aproximou-se da porta do quarto, ergueu-se e passeou-se pelo corredor. Era um vestido elegante, justo, com um decote generoso, alças finas e saia em viés. Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. Mas era a sala que o atraía. Meio escondido por um móvel, espreitou.
Apesar de ser Inverno, a noite estava estranhamente tépida. Por isso, uma janela da sala encontrava-se ligeiramente entreaberta. Pela estreita frecha, dissimulada por trás do cortinado, a manga da tua camisa branca ondulava. No tecido alvíssimo brilhava um dos botões de punho que eu te oferecera há precisamente um ano atrás, no Dia dos Namorados.
O meu vestido preto deslizou, encostado à parede, para dentro da sala. A tua camisa branca escorregou, brandamente, pela janela até passar pelo cortinado. Ficaram assim uns segundos. Cada um num canto da sala. Olhando-se insinuantemente. Devagar, moveram-se num jogo de sedução de avanços e recuos. Lentamente, foram-se aproximando um do outro e, em pouco tempo, encontravam-se frente a frente. Dissimuladamente, a ponta da saia do meu vestido preto rasou a ponta da tua camisa banca. Com um movimento lento, mas seguro, a manga da tua camisa enlaçou a cintura do meu vestido. E ambos iniciaram uma dança lenta, deslizando pela sala, ao som da música suave. A alça do meu vestido preto deixou-se tombar sobre o ombro da tua camisa branca que se apertou um pouco mais contra ele. Coquete, o meu vestido preto soltou-se da tua camisa branca e afastou-se, bamboleando-se. Mas a manga da tua camisa puxou o meu vestido com suavidade e firmeza. Aos poucos, o ritmo da dança foi aumentando e ambos rodopiavam já freneticamente pela sala. Num ritmo insensato o meu vestido preto e a tua camisa branca enredavam-se numa exaltação sem limites. E eram já alças, botões, negros, brancos, que se roçavam, entrelaçavam, enredavam. Pelos móveis escorriam sedas, deleitavam-se bainhas, costuras e colarinhos. A música pulsava nas fibras, inaudível. Lançados num precipício, o meu vestido preto e a tua camisa branca desciam, vertiginosamente. E, num último êxtase, o tempo parou. Suspensos, suportaram-se, fugazmente, e abandonaram-se, finalmente, numa queda ondulante até ao fundo do repouso.
*
Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. A sala continuava meticulosamente arrumada. Só no sofá o meu vestido preto e a tua camisa branca repousavam, languidamente, entrelaçados.
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