Chovia. O verão
havia-se espraiado pelo outono dentro tornando-o seco e quente. Até há alguns
dias atrás, as pessoas comiam as castanhas de sandálias e mangas curtas. Mas,
agora, o inverno parecia ter chegado com a pressa que lhe conferia o atraso.
Em casa, Jorge
preparava o ritual do costume. Tinha acabado de jantar, a cozinha estava
arrumada e o sofá esperava-o. Pôs um cd a tocar, Aznavour, She, claro, e
assomou à janela. Chovia, agora, torrencialmente, o vento assobiava e ele
sentiu um arrepio, apesar do calor da sala. Pensou nela. Àquela hora estaria
também em casa, a trabalhar, ou teria saído com alguém? Apesar do ciúme que
ainda o consumia a cada minuto preocupou-se mais por ela estar na rua com
aquele temporal.
Tinham terminado a
relação há mais de um mês, mas ele não conseguia esquecê-la. Nem sequer
tentava. A recordação daquela mulher continuava a fazer-lhe companhia durante o
dia e a noite. É certo que já não lhe enviava mensagens nem lhe telefonava, mas
continuava a senti-la tão próxima como antes, quando passavam o dia a falar-se.
Suspirou e virou-se
para se dirigir ao computador para reler, mais uma vez, os mails dela e as
conversas que tinham mantido durante quase cinco meses. Era o que fazia todas
as noites.
Mas, naquela noite,
sentia-se estranho, como se algo importante estivesse para acontecer. Perdido
nos seus pensamentos, tropeçou numa cadeira esquecida por ali e,
desequilibrando-se, acabou mesmo por cair. Levantou-se, esfregando as têmporas,
e … ficou parado, petrificado! No espelho que se erguia diante de si Jorge via,
claramente, a imagem de Marta que o olhava com estranheza. Na verdade, a mulher
parecia tão espantada e assustada como ele!
A duzentos
quilómetros dali, Marta tentava concentrar-se no trabalho. Era sexta-feira, mas
queria terminar aquele relatório para ficar com o fim de semana livre. No
entanto, a chuva intermitente não a deixava raciocinar. Pensava nele. Tinha
sido um amor de verão, mas sempre soubera que seria no inverno que mais
sentiria a falta da companhia dele. Não conseguia esquecê-lo. Sabia que,
naquele momento, ele também pensava nela. Aliás, nenhum dos dois duvidava dos
sentimentos do outro. Apenas não conseguiam viver juntos.
Não adiantava. O
relatório teria que esperar. Selecionou, no computador, o She do Aznavour e
levantou-se para ir buscar umas bolachas. Mas, de súbito, estacou. No espelho,
em frente a si, o homem olhava-a, perplexo. Jorge!
Instintivamente,
ambos levaram as mãos ao espelho. E, no momento em que se tocaram, o
imponderável aconteceu: caíram num precipício que os puxava para baixo, num
rodopio estonteante. E, enquanto caíam, o pensamento de ambos voava para as
palavras que costumavam trocar no início da relação. Nenhum dos dois queria
comprometer-se, mas sempre se tinham sentido à beira de um abismo que os atraía
fatalmente. E, agora, ali estavam, voando em direção ao desconhecido, de mãos
dadas.
A queda demorara
apenas breves segundos e, rapidamente, se viram numa sala com cerca de 20 metros quadrados ,
rodeada de dezenas de portas feitas de espelhos. Todas pareciam iguais e não
conseguiam sequer distinguir aquela por onde tinham entrado.
- Diz-me que isto é
um sonho, por favor.
- O nosso sonho –
sorriu Jorge.
- Tu brincas!? Não
tens noção do que está a acontecer? Não percebes que estamos noutro mundo,
fechados numa sala de espelhos, sem sabermos como sair daqui??
Marta continuava
apavorada, mas, como sempre, rapidamente recuperara o sangue-frio e voltara ao
costume de falar pelos cotovelos. Percebia que Jorge não estava demasiado incomodado
com a situação. Percebia mesmo o agrado que ele sentia por estar ali, só porque
estava com ela. E Marta também não conseguia perceber se o seu coração batia
assim tanto por causa do inusitado da situação ou também por causa da presença
dele.
- Repara, aquelas
três portas parecem um pouco diferentes – disse Jorge. – as ombreiras são
bastante mais grossas do que as outras. Experimentemo-las.
Abriram primeiro a
da esquerda. Mal podiam acreditar. Do lado de lá da porta a sala de Jorge
aparecia exatamente como ele a deixara há minutos atrás. Tentaram a da direita
e lá estava o quarto de Marta, exatamente como antes.
- Quando a esmola é
demais …
Marta achava
estranho que conseguissem sair dali tão facilmente, mas não queria desperdiçar
aquela oportunidade.
- Falta-nos a porta
do meio. Não podemos voltar a casa sem vermos o que está por detrás desta
porta.
- Estás doido!?
Temos que aproveitar esta hipótese para sairmos daqui rapidamente!
- Vá lá, onde é que
está aquele teu recanto aventureiro? Consegues mesmo sair daqui sem ver o que
está ali? – sorriu-lhe, trocista, sabendo que ela não resistiria.
- Está bem.
Entreabrimos a porta e espreitamos, só um bocadinho – cedeu ela.
Jorge não esperou
que Marta mudasse de ideias e abriu a porta, escancarando-a. A princípio não
perceberam. Do lado de lá via-se uma sala aparentemente normal. Mas ambos se
sentiram percorridos por um calafrio. A sala parecia-lhes familiar como se a
conhecessem há muito tempo. E o mais estranho é que cada um sabia que o outro
sentia o mesmo.
- Entramos? –
perguntou ele, desafiador.
- Não … - mas a voz
dela hesitava.
Jorge pegou na mão
de Marta e puxou-a devagarinho. Ela não resistiu. Tivera sempre dificuldades em
resistir-lhe. Foram avançando. Marta ia dizendo que aquela sala era magnífica,
simplesmente perfeita.
Virou-se para Jorge
ao aperceber-se de que ele não lhe respondia. Viu-o lívido. Olhava para uma
foto que estava em cima de um móvel que logo cativou Marta. Mas também ela se
tornou lívida. Na fotografia, Jorge e Marta riam, abraçados, numa pose
descontraída. Vestiam roupas que nunca tinham usado, estavam numa praia que
nunca tinham conhecido. Entreolharam-se apenas, receando até o olhar um do
outro. Passearam os olhos pela sala, perscrutando cada pormenor. O que viam deixava-os
perplexos. Por todo o lado eram bem visíveis os vestígios de uma vida de casal.
As fotografias que se perfilavam pelos móveis e paredes da sala eram
testemunhas inabaláveis de uma vida em comum.
- Isto não está a
acontecer. Ajuda-me, por favor! – gemeu Marta.
- É simples: de
alguma forma, entrámos numa outra dimensão e encontrámos uma vida paralela à
nossa. Nesta dimensão conhecemo-nos mais cedo, namorámos, casámos, vivemos
nesta casa …
- A casa dos nossos
afetos – sorriu Marta.
Jorge estranhou que
o pragmatismo dela não a tivesse feito já voltar as costas àquela loucura.
Sentiu-a ceder, enternecer-se com a ideia daquela vida a dois que lhes chegava
reconfortante e tentadora. Sentou-se no sofá, puxou-o para ele e ficaram assim,
uns momentos, de mãos dadas, saboreando aquela ilusão de vida. Jorge abraçou-a
e começou a acariciá-la. A lareira estava, providencialmente, acesa e a luz era
ténue. Marta deixou-se levar pelo sabor dos beijos dele. Que saudades tinha!
Ainda sussurrou:
- Não … os donos da
casa podem chegar …
- Os donos da casa somos nós, querida - murmurou Jorge, aspirando o perfume da pele dela atrás da orelha.
- Não percebes a oportunidade que
temos nas mãos? Se ficarmos, podemos viver esta vida. Juntos! Deixo tudo por
ti, entendes?
- Entendo, sim.
Entendo que tens um único laço na tua vida real. Eu tenho muitos. E, por mais
aventureira que seja, tenho consciência de que “isto” não é real. Não sabemos sequer
o que aconteceria se ficássemos.
Jorge sabia que não
conseguiria demovê-la. Não valia a pena iniciar outra discussão. Sentiu-lhe a
firmeza da voz. Decidiu, portanto, ceder e levá-la dali para fora. No fundo,
também tinha medo do que poderia acontecer. Medo por ela. Deixou-se arrastar
até à porta. Ambos hesitaram antes de saírem. Viraram-se para trás, passaram os
olhos por aquele lugar, o casa deles. Marta virou-se repentinamente, puxando
Jorge. Fechou a porta sem hesitar.
- Pronto, agora é
só abrirmos as portas certas – disse Marta, convictamente.
- Espera! Quando
voltarmos à vida real, provavelmente, não nos lembraremos do que aconteceu.
Mas, mesmo que nos lembremos, não quererás falar comigo. Estas podem ser as
últimas palavras que trocamos.
Marta aproximou-se
dele, segurou-lhe o rosto nas mãos e perguntou-lhe com a doçura que o amor por
aquele homem sempre lhe suscitara:
- Acreditas mesmo
que não nos voltaremos a falar?
Soltou-lhe o rosto,
depois de lhe depositar um beijo terno nos lábios. Virou-se, resoluta, abriu a
porta que levaria ao seu quarto e entrou.
Jorge também não
hesitou. Sem ela, aquele lugar tornara-se frio e aterrorizador. Abriu a porta
que levava à sua sala e por ela desapareceu.
Marta estava
sentada no sofá do quarto. Há dez minutos que olhava fixamente para o espelho.
Não se lembrava de como chegara ali, mas recordava cada segundo desde que, ao
levantar-se para ir buscar bolachas, deparara com Jorge do outro lado do
espelho. Sentia-se confusa, triste, como se parte da sua alma tivesse ficado
naquela outra sala, naquela vida que também era a sua. Seria possível que ela
existisse numa vida paralela a esta, numa vida em que vivia com o homem que
amava tudo o que ambos tinham sonhado juntos? Seria por isso que nesta vida em
que não conseguiam entender-se também não conseguiam separar-se
definitivamente? Precisava tanto dele naquele momento. Provavelmente a parte da
alma que lhe faltava não tinha ficado na outra vida, mas sim na alma dele. Não
queria ligar-lhe. Não sabia se ele se lembrava do que tinha acontecido e
receava que a considerasse louca se lhe contasse.
Não precisou de
esperar muito. O som do telemóvel despertou-a daquela letargia em que se
encontrava. A voz dele soou-lhe como nunca. Parecia-lhe agora que estivera
prestes a afogar-se, que não conseguia respirar e que só ao ouvi-lo subira à
superfície da água.
- Meu Deus! Não
imaginas como precisava de te ouvir!
- Isso quer dizer
que não sonhei aquele sonho sozinho? – perguntou-lhe ele, ainda um pouco
trémulo.
- Morri de medo que
não te lembrasses. Seria terrível viver com esta memória sozinha.
- Precisamos de
falar sobre isto – insinuou ele, timidamente.
- Vem!
- Estou aí em duas
horas. Espera por mim, querida.
Na voz dele ouviu-lhe
o sorriso luminoso, o brilho do olhar, sentiu-lhe o calor do coração. Queria-o
tanto como ele a ela. E tudo perdeu importância. O sonho, a vida paralela ou o
que quer que fosse. Nada importava a não ser o reencontro que se aproximava.
Nenhum dos dois pensava já no que acontecera. O amor dos dois era mais
importante, maior que tudo. Talvez o que acontecera tivesse sido apenas fruto
da vontade enorme que tinham de estarem juntos, de se amarem, de não se
perderem. Em duas horas voltariam a estar juntos. Numa outra casa, numa outra
vida ou na vida que construiriam para eles. Nenhum dos dois duvidava de que a
vida de cada um estaria para sempre ligada à do outro.
Deste lado do
espelho, Jorge e Marta encontrariam, certamente, uma forma de permanecerem
juntos. Destino? Não. Simplesmente, amor.
(Texto escrito para o blogue Fábrica de Histórias)
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