A quarta-feira acordara cinzenta e a
ameaçar chuviscos. Às nove da manhã já Matilde se encontrava na ampla sala do
lar. Ampla não porque fosse grande, mas pelo vazio de mobiliário e de afetos. O
edifício era constituído por dois andares, para além do rés do chão. Aqui
apenas os dois elevadores estavam acessíveis ao público. No primeiro andar, a
lavandaria, a cozinha e duas pequenas salas de arrumações. O coração da casa
era o segundo andar. No longo corredor, o escritório da diretora, dez quartos,
com duas camas cada um, uma casa de banho grande, ao fundo, uma sala de
refeições e uma sala dupla, a de estar. Soalho de tábuas corridas, portas e
tetos altos. Um total de vinte idosos.
Há dois meses, a doença tinha-lhe
roubado os últimos movimentos que lhe permitiam alguma independência e também a
fala. A família escolheu o lar – a rapidez da decisão mostrou-lhe que aquele
plano estava há muito traçado – e levou-a num dia quente de julho. Estava sol e
a viagem de 50 kms até à instituição que a acolheria foi penosa. Os filhos,
pensando que ela se sentiria afogueada, ligaram o ar condicionado. Não lhes
passava pela cabeça que a tristeza da mãe se devia à sua condição de velha a
caminho de um lar. Não se lembravam de que Matilde gostava do verão, do calor,
do sol. Não se lembravam de que já tinham sido como as famílias que viajavam
nos carros que por eles passavam. Tinham pressa de chegar, deixar a mãe no lar,
entregue a outros, e regressarem a casa. Ou vergonha. Pelo contrário, durante
todo o percurso, Matilde observava as famílias que se dirigiam à praia – onde,
ironicamente, se situava o lar – e revia-se nelas. Lembrava-se do tempo em que
os filhos eram pequenos e ela se sentava à frente, ao lado do marido, o carro
cheio de roupas, brinquedos, ralhos, risos e sol. Não havia ar condicionado,
não havia silêncios, não havia pressa, não havia vergonha.
A sua entrada no lar foi rápida. Os
filhos tiraram-na do carro, sentando-a na cadeira de rodas, e percorreram os
dez metros de beco até à porta de serviço – a da entrada principal tinha cinco
degraus. Entraram no minúsculo hall e, com grandes dificuldades, meteram-se no
estreito elevador que os levou ao segundo andar. Encostaram-na a um canto do
longo corredor e, durante cinco minutos, conversaram com a diretora do lar, num
minúsculo escritório cujo interior conseguiu vislumbrar no momento em que a
porta se abriu. O filho deu-lhe um beijo rápido. “Até domingo, mãe.”. A filha
levou-a àquele que seria o seu quarto – partilhado com outra mulher em estado
quase vegetativo -, verteu uma lágrima e saiu. (É tão fácil partir!).
Presa num espaço e num corpo que a
excluíam do mundo, Matilde, cuja mente se mantinha tão ativa e arguta como há
40 anos, encontrou uma fuga. Recusou-se a adaptar-se a um lugar que considerava
deprimente e às condições que a sua nova vida lhe impunha. Incapaz de impor a
sua vontade no que respeitava ao seu corpo, usou a única coisa que preservaria
sempre só para si e a que ninguém tinha acesso: a mente! Tinha sido uma mulher
pragmática durante toda a vida. Segundo ela, a vida dividia-se em três momentos
distintos, se bem que pudessem aparecer interligados: os momentos bons, os
momentos maus e os momentos assim-assim. Decidiu, portanto, organizar os seus
dias, de acordo com esta premissa. As segundas, quartas e sextas-feiras seriam
dias bons. As terças, quintas e sábados seriam dias maus e os domingos seriam
dias assim-assim. Apesar de o dia assim-assim ser um só, valia por três: era o
dia das visitas! O equilíbrio era, portanto, perfeito.
Era sexta-feira. Um dia bom. Então
Matilde fechou os olhos – se pensassem que dormia, não a incomodariam – e
embrenhou-se nas suas recordações.
Ele fora buscá-la, manhã cedo, num sábado de fim de setembro. Novamente
aquela sensação de liberdade, de que o mundo era perfeito, que a invadia sempre
que estavam juntos. Percorreram o caminho até à Régua em menos de duas horas.
Tudo a encantava. Naquela altura ainda pensava que o encantamento era
recíproco. E que importava que não tivesse sido? Enquanto acreditou no engano
foi feliz. Demorou-se na recordação do almoço, numa esplanada, à beira-rio, na
noite fresca e no passeio de braço dado, no almoço de domingo, em Lamego, na
subida à Senhora dos Remédios, no jantar já na praia da Costa Nova …
Durante o
dia foi interrompendo as recordações para se concentrar na difícil tarefa de
comer. Também tentava prestar atenção a alguns episódios que se passavam à sua
volta, de forma a, eventualmente, os usar a seu favor.
Depois do jantar, deitaram-na e
Matilde continuou a sua viagem. Sentia que lhe restava cada vez menos tempo,
mas não queria partir sem agarrar ainda outra recordação. Mais uma vez fingiu
que dormia para que não a obrigassem a tomar o comprimido do costume. A eterna
mania de se pensar que os velhos querem adormecer mal o sol se põe e, caso tal
não aconteça, entupi-los de comprimidos para “descansarem”.
O que seria feito dele? Se estivesse
vivo teria 89 anos, mais nove que ela. Provavelmente viveria também num lar.
Durante muitos anos, a alma ardia-lhe de vontade de o procurar. À noite
apetecia-lhe sair de casa e correr até cair exausta, gastar a energia frenética
que a assolava por já não o ter consigo. O aperto no peito, a angústia, aquela
dor física profunda que nasce das entranhas como se se tratasse de uma ferida
lancinante, eternamente temperada com sal e vinagre nunca acalmou. Sabia que
não lhe restava muito tempo de vida e a que tinha não passava de um charco
lamacento, putrefacto e estagnado. Ter-lhe-ia bastado uma palavra dele que lhe
mostrasse que ainda pensava nela.
Decidiu parar de pensar. Sempre
tivera essa capacidade extraordinária de desligar o pensamento em momentos
particularmente dolorosos.
Um dia alguém lhe dissera que o seu
maior medo era morrer numa cama de hospital sozinho. Ela sempre soubera que
consigo seria assim.
Era sexta-feira. Um dia bom. Matilde
sentiu que sábado já não seria um dia mau. A sua viagem chegava ao fim. Os
filhos, os pais, o marido, alguns amigos … mas foi com a imagem do rosto dele
que partiu. E as palavras dele quando acordou da primeira noite que passaram
juntos: ”Olá. Estás aí?” Partiu com o mesmo sorriso que lhe devolveu nessa
manhã.
Oi, vim fazer um pedido e dar uma dica!
ResponderEliminarA dica é que se você introduzir o conto com algumas palavras suas, talvez algo temático, engraçado ou crítico, pode trazer mais interesse de quem passe o olho.
O pedido é para você comentar algo que eu escrevi no meu blog em http://asneiraeliteratice.blogspot.com/
Me ajudaria bastante!
Olá, Ana!
ResponderEliminarObrigado pela sua visita e simpático comentário, que retribuo com muito gosto.
E gosto amargo tem este tema, duma realidade inevitável, e para muitos muito triste - que aqui aparece muito bem descrita.Parabéns!
Um abraço.
Vitor