O prédio onde se encontrava o gabinete
de arquitetura era muito antigo, mas, como ficava situado num dos bairros
típicos da cidade, sofrera, tal como os edifícios contíguos, um restauro
profundo, havia cinco anos.
Desceu
as ruas do bairro, no passo tranquilo de sempre, e foi deter-se na esquina em
frente da taberna. Casa de pasto, como lhe chamavam, orgulhosamente, os donos.
Aquela paragem fazia parte da rotina de Tomás. Todos os dias, à mesma hora, se
escondia, na esquina, para contemplar, embevecido, a cena comovente: o
taberneiro sentava-se na mesa mais próxima da porta, abraçava o velho acordeão
e, alheio a tudo, dedilhava, ora tranquila ora freneticamente, as teclas do
instrumento. Enquanto isso, a mulher, na casa dos 70 anos, tal como o marido,
sentava-se ao lado dele, de olhar enternecido, como se o ouvisse pela primeira
vez. Todos os dias, Tomás lutava contra o sentimento de culpa por estar a
devassar a intimidade do casal. Sentia-se um intruso, por isso se escondia. Mas
não conseguia evitar ir beber um pouco daquele companheirismo, da familiaridade
da cena.
O divórcio, aos 45 anos,
definitivamente consumado há cinco meses, havia tornado a sua vida ainda mais
solitária. Não que se queixasse de tal. Pelo contrário. Gostava de viver
sozinho. Partilhar o seu espaço com outra pessoa incomodava-o, reprimia-o,
sufocava-o. Gostava de observar as vidas dos outros, mas fazia-o por mera
curiosidade e, de certa forma, para se alimentar dos sentimentos alheios.
A música parou. Tomás continuou o seu
caminho. Não tardou a embrenhar-se na larga avenida onde desembocava o bairro e
que, àquela hora, era movimentadíssima. Atravessou as quatro faixas da estrada
e caminhou em direção ao rio. Deixara para trás o bulício da cidade e
parecia-lhe ter entrado num outro mundo. Tudo ali era muito mais vivo, mais sentido.
Em nenhum outro lugar que conhecia, a luz de um fim de tarde primaveril era tão
intensa. O cheiro a maresia inundou-lhe as narinas e Tomás apressou o passo.
Rapidamente, o atalho por entre os prédios se abriu num largo e belíssimo
espaço. A calçada portuguesa e os espaços verdes, cheios de árvores, relva,
flores e pequenos lagos, contrastavam com a modernidade das construções e os
bancos de cimento que salpicavam a paisagem. Mas o rio harmonizava estes
contrastes. De certa forma, era como se a água fosse um elemento agregador e
tudo o resto existisse em função dela.
Tomás dirigiu-se à esplanada e
sentou-se na mesa do costume.
Ela já estava sentada, como
habitualmente, na mesa do canto.
*
Ana viu-o chegar antes mesmo de ele
entrar no seu campo de visão. Esperava-o, claro. Apesar disso, o seu coração
deu um salto quando a figura dele se desenhou na sombra da velha e resistente
magnólia. Manteve-se imperturbável até que ele se sentou na mesa do costume e
trocaram o habitual sorriso polido, mas intimista. À volta deles todas as
outras mesas se encontravam já ocupadas com os frequentadores habituais.
Havia o velho de cabelos brancos e
olhar perspicaz, sempre sozinho, lendo jornais e revistas de informação.
Os dois executivos, de fato e gravata,
que chegavam juntos. Apesar das alianças, que indicavam serem casados, as
atitudes de ambos mostravam, claramente, que ali iam ao engate.
Havia também a advogada. Na casa dos
quarenta, bonita, sensual, moderna, sempre muito bem vestida. Aparecia apenas
com companhias masculinas que iam variando com frequência.
E a mulher feia. Muito bem vestida,
alta, de longos cabelos com madeixas que puxava para o rosto na vã tentativa de
esconder a sua fealdade. Aparecia sempre sozinha.
Parecia a Ana que aquelas pessoas não
passavam de figurantes, pintando um cenário construído propositadamente para
emoldurar a cena que ambos protagonizavam diariamente.
Era um jogo que se prolongava já há
dois meses. A princípio, os fins de tarde na esplanada aconteciam duas, três
vezes por semana. No entanto, com o passar do tempo, Ana foi-se tornando mais
assídua e ele correspondeu ao convite implícito. Passaram a encontrar-se todos
os dias da semana. Pelo menos era assim que ela considerava aqueles momentos:
um encontro. Nunca tinham trocado mais do que sorrisos, olhares, breves acenos
de cabeça. Nos primeiros tempos sorriam à partida e à chegada como
reconhecimento da presença um do outro. Mas, a pouco e pouco, foram criando
alguma cumplicidade, estabelecendo uma relação, no mínimo, estranha. Criaram
até uma espécie de código de sorrisos. Tinham um sorriso malicioso para os
olhares gulosos que os dois executivos deitavam às mulheres bonitas que por ali
passavam. Um sorriso constrangido para as várias e diferentes companhias
masculinas que a sensual advogada ia trazendo. Um sorriso compreensivo para a
solidão e timidez da mulher feia. Um sorriso ternurento e respeitoso para o
ancião que os olhava sempre com o interesse de um voyeur. E, depois, tinham os
sorrisos exclusivos, aqueles que provinham apenas do interesse que nutriam um
pelo outro. O sorriso bem disposto e luminoso da chegada. O sorriso embevecido
de quando apenas lhes apetecia sorrirem-se. E, finalmente, o sorriso-lamento da
despedida.
*
- Pai, mas que ideia peregrina foi
essa de convidar dois desconhecidos para a minha exposição? Sabe muito bem que
se trata de um evento privado, porque eu não quero expor os meus trabalhos publicamente.
Aos 85 anos, e ainda na plena posse
das suas faculdades, o capitão Malheiros estava decidido a brincar ao Destino.
Apesar de a sua vida estar cheia de gente, entre filhos, netos, bisnetos e
amigos, apetecia-lhe fazer aquela marotice: juntar o homem e a mulher que
costumava ver na esplanada. Já há algum tempo que aquela ideia germinara na sua
cabeça. Assistiu ao enamoramento dos dois e seguia-o com um interesse
progressivo. Por isso, aquela exposição privada dos quadros da filha lhe
parecera uma oportunidade a não desperdiçar.
Levar Tomás até ali não tinha sido
difícil. Sabia que ele gostava de pintura, porque o via frequentemente
acompanhado de livros sobre o assunto. Uma vez vira-o conversar com um antigo
colega seu de faculdade e soubera, mais tarde, indagando discretamente, quem
era aquele homem. Assim, alguns dias antes, enviara um convite para o gabinete
de Tomás e a resposta afirmativa não havia tardado a chegar. Estava certo de
que Tomás se sentia intrigado por não conhecer a pintora, mas não resistira ao
convite.
Levar Ana é que lhe tinha dado
trabalho. Não sabia nada acerca dela. Ainda tentou segui-la, um dia, mas essa
tarefa revelou-se inglória: o passo rápido da mulher fê-la desaparecer entre a
multidão. Sem grandes esperanças, mas em desespero de causa, arriscou-se, uma
tarde, a meter o convite na carteira dela, quando se levantou para ir ao
balcão. Afinal, dali a uns dias, chegaria a resposta afirmativa.
Agora, esperava ansioso pela chegada
dos dois.
*
O convite para a exposição que Tomás
recebera no seu gabinete deixara-o bastante intrigado. Embora o apelido da
pintora lhe tivesse lembrado imediatamente o velho que frequentava a mesma
esplanada que ele, nos fins de tarde, e de quem Costa Fernandes, velho amigo de
seus pais, lhe falara, estranhou o convite. Mesmo assim, e porque a pintura era
uma das várias paixões que tinha na vida, decidiu comparecer na exposição.
*
Ana entrou em casa e fechou a porta.
Ao abrir a carteira para lá colocar as chaves, apercebeu-se do envelope. Não se
lembrava de o ter lá colocado e não fazia ideia de que se tratava. Com ele na
mão, dirigiu-se à janela da sala, como sempre, para admirar a paisagem. O apartamento
era perfeito, mas tinha sido a vista sobre o rio, que se desenhava logo a
seguir aos jardins que delimitavam o prédio, que a tinha feito decidir-se.
Baixou os olhos para o envelope e abriu-o. Para além de não conhecer a pintora
e, portanto, não perceber por que motivo lhe tinha sido enviado o convite,
sentia-se sobretudo intrigada pela forma como o envelope se tinha materializado
na sua carteira. É que não conseguia mesmo perceber como é que aquilo tinha
acontecido. Mas o apelido pomposo e sobejamente conhecido da pintora e o bom
gosto que o envelope, o papel, a letra e a linguagem transmitiam
tranquilizaram-na. Além disso, a sua vida era demasiado vazia para se dar ao
luxo de não aceitar um convite daqueles. E a pintura parecia ser um sério
interesse do homem da esplanada. Decidiu ir à exposição.
*
Tomás deambulava pelos jardins da
magnífica mansão, apreciando os quadros que eram realmente muito interessantes.
Já havia cumprimentado o velho, que reconheceu da esplanada, e a filha a quem
dirigiu rasgados elogios pela qualidade do seu trabalho. Não se considerava um
expert, mas era um profundo conhecedor da matéria. Livros, programas de
televisão, exposições, absorvia tudo o que podia sobre pintura. Viajava,
frequentemente, para qualquer parte do mundo para ver exposições de pintores
que admirava ou até dos que desconhecia, mas que, de alguma forma, lhe
despertavam o interesse.
Continuava sem perceber por que motivo
tinha sido convidado para aquele evento e quem o tinha feito, mas parecera-lhe
inconveniente referir o assunto ao velho ou à filha.
Conversava, animadamente, com dois colegas de
faculdade que tinha encontrado, quando o tempo pareceu parar: ela! Apesar de
viverem na mesma cidade parecia-lhe inacreditável que se encontrassem
precisamente num local onde ele estava por mero acaso. A presença dela
perturbava-o visivelmente. Um turbilhão de pensamentos o assolou. Deveria
mostrar-se? Falar-lhe? Manter-se quieto? De momento permanecia estático, incapaz
de se decidir.
*
Ana saiu pela janela da sala para o
pátio interior. Já o tinha visto há cerca de 10 minutos. Ficara petrificada!
Era desconfiada por natureza e aquele convite estranhíssimo ainda a deixava de
pé atrás. E agora aquele homem estava ali! É claro que isso a deixava feliz.
Vislumbrava uma oportunidade de se aproximarem, de, finalmente, conversarem.
Mas sentia que alguma coisa não estava bem.
Passeou-se um pouco pelo interior
daquela casa magnífica para tentar acalmar-se. Apesar da agitação conseguiu
admirar a belíssima sala onde o órgão de igreja reinava. Tratava-se de um
instrumento do séc. XIX, comprado por um antepassado do pai da pintora para
oferecer à mulher no seu 36º aniversário. O teto da sala tinha sido retirado,
para se colocar o órgão, o que implicara eliminar o piso superior àquela sala.
Mas tinha valido a pena. Para além do extraordinário órgão, o novo teto da sala
tinha sido restaurado por um importante pintor da época que o decorou com
frescos minuciosamente sugestivos. Ana passou, depois, para uma sala que, tal
como o resto da casa, estava decorada com pouca mobília. No entanto, o tamanho
e a cor escura de cada peça faziam a divisão parecer pequena. Estranhou uma
pequena porta, quase escondida num canto, e entrou. Sentiu-se maravilhada.
Encontrou-se dentro de uma pequena biblioteca, quase hermeticamente fechada.
Não havia janelas, apenas um pequeno espaço aberto num canto no alto de uma
parede com o intuito óbvio de arejar a divisão. O acesso fazia-se apenas pela
porta por onde tinha entrado. Ana era uma apaixonada por livros e, por isso,
aquele lugar deslumbrou-a. No meio, havia uma mesa onde, protegido por um
cubelo de vidro, se encontrava uma primeira edição de um livro famosíssimo.
Este estava aberto e podia ver-se uma iluminura belíssima. As paredes estavam
todas forradas por estantes repletas de livros. Mal conseguia respirar ao ler
os títulos e os nomes dos autores. Aquela biblioteca era valiosíssima! Apesar
de se sentir ali tão bem, decidiu sair rapidamente. Parecia-lhe estar a invadir
um espaço que não era seu.
Saiu, de novo, para a sala através da
qual vira o homem da esplanada. Era tudo muito estranho, mas estava decidida a
falar com ele. Ou melhor, a fazer com que ele falasse com ela.
Admirava um quadro exposto num dos
carreiros que serpenteavam pelo jardim, quando ouviu a voz dele perto de si:
- Muito interessante, não acha?
- Muito – respondeu Ana com um sorriso
tão patético como o dele.
*
Segunda-feira. 17.30h. O espanto e a
curiosidade eram gerais: na mesa do canto, Tomás e Ana conversavam
animadamente.
Numa mesa um pouco mais reservada, o
capitão Malheiros sorria, discretamente, orgulhoso da colherada que havia
metido naquela história. Sem arrependimentos. Ora! Não fora a sua providencial
intervenção e aqueles dois continuariam a sorrir-se eternamente à distância!
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