UM POÇO À BEIRA-MAR
Saí da água
gelada, tiritando daquele friozinho alegre de férias, e subi a areia aos
pulinhos para me deitar ao sol a secar. Tenho sete anos e não há nada na vida
de que goste mais do que estar metida dentro deste mar gelado e bravio. É claro
que a presença dos meus pais constantemente à minha volta me dava aquela ideia
de segurança total. Para quem com um ano de idade berrava como se a estivessem
a esquartejar só de ver a areia … melhorei até demais, segundo os meus pais.
A
gritaria e a correria da multidão já tinham começado há uns minutos, quando
consegui escapulir-me das mãos da minha mãe, gritando-lhe que ia ter com o meu
pai que, entretanto, já estava à beira mar. Se os sete anos nos impedem de
fazer muitas coisas, também nos permitem cirandar por entre uma mole humana
afligida por uma tragédia.
Na
areia molhada, quase dentro de água (felizmente, naquela manhã, a maré estava
baixa), um grupo de homens, deitados de barriga para baixo, formava um círculo
à volta de uma corda que demarcava a linha para lá da qual não deveriam passar.
Atrás de cada homem, outro o segurava, firmemente, pelos pés. Os homens
deitados no chão escavavam a areia dentro do círculo marcado pela corda com um
cuidado inquieto.
A certa
altura, no meio do círculo, longe do alcance das mãos dos homens, a areia
molhada começou a abater, afundando-se como num remoinho. A multidão gritou em
uníssono. Num ápice, um dos homens soltou-se do que lhe segurava as pernas,
saltou para o meio do círculo e escavou, desesperadamente, o buraco que a areia
abria. Em poucos segundos tinha o braço direito todo metido dentro da areia e
ao retirá-lo todos pudemos ver, na sua mão, uma pequena mecha de cabelos
claros. Os outros homens esqueceram o cuidado, saltaram para dentro do círculo
e escavaram furiosamente a areia à volta do braço do primeiro. De dentro do
emaranhado de braços e mãos surgiu, então, uma visão horrenda: a cabeça de um
garoto de cerca de dez anos! O rosto coberto de areia, os olhos fechados, a
língua de fora completamente roxa e cheia de areia.
Mais
confiantes na escavação, rapidamente retiraram todo o corpo inerte do miúdo. Ao
grito horrorizado de quem assistia ao salvamento seguiu-se um silêncio
arrepiante. Até as ondas marulharam baixinho. Mas bastaram poucos segundos para
que o rapaz tossisse e iniciasse uma berraria pouco própria de quem deveria ter
os pulmões cheios de areia.
Foi a única
vez que vi um grupo de homens chorar.
Infelizmente
nunca soube o que se terá passado a seguir. A mão do meu pai que me deveria ter
dado dois pares de estalos e a voz da minha mãe que me deveria ter gritado
silenciaram-se num carinho ainda mais doce do que o habitual.