PRIMAVERA
EM JANEIRO
Diz-se que
as pessoas só são interessantes até se descobrir os seus segredos, porque eles
são, habitualmente, banais quando vêm à luz do dia. Pois ela contrariava este
dito.
16.43.
Entrava no café dois minutos antes da hora combinada. Lentamente. Consciente do
seu ar de elefante dentro de uma loja de cristais. Pesavam-lhe a idade, a
gordura, as rugas, o tempo, os anos de maus tratos, tristezas, indiferenças.
A ele, no
entanto, nada lhe pesava. O homem que esperava mantinha um aspeto bastante
agradável. Magro, o cabelo ainda pouco grisalho, o andar ágil da juventude.
Sabia-o,
porque há cinco anos que o seguia. Desde que à custa de muito tempo, trabalho e
dinheiro conseguira reencontrá-lo, telefonava-lhe todas as semanas.
Relutante a
princípio, negando a lembrança daquele amor da adolescência, ele acedera a
dar-lhe o seu número de telemóvel apenas para evitar o falatório provocado pela
insistência dela ao ligar-lhe para a escola.
A muito
custo, conseguira que ele aceitasse um encontro, dois anos depois de o ter
procurado. Casado e sem qualquer intenção amorosa para com ela, insistia para
que parasse de lhe telefonar. Aliás, estivera dez meses sem atender as chamadas
dela depois de alguns episódios bastante embaraçosos em que ela lhe deixava livros
ou CD no capot do seu carro! Se ele soubesse das diligências que ela fazia para
o ver! No início de cada ano letivo passava dias inteiros sentada no muro do
rio, a uma distância segura da escola onde ele lecionava, para descobrir o horário
dele e assim passar regularmente para o ver. Descobrira, também, onde ele vivia
e, um dia, metera-se numa camioneta para passar à sua porta.
Sabia
perfeitamente que ele só continuava a conversar com ela por pena. Feia, mal
vestida, sem escolaridade, até a si o cheiro do próprio corpo enjoava.
Desempregada, um ex marido agressivo, duas filhas longe e uma solidão pesada.
Nada tinha a ver com aquele homem que seguira outro caminho. Um casamento
feliz, uma profissão de sucesso, bom aspeto físico. Que lhe importava?
Continuaria a pensar nele, a telefonar-lhe, a esperar por ele. Não tinha
nenhuma outra alegria na vida. Orgulho? Vergonha? Que vantagem lhe trariam?
Prescindia desses valores em favor da felicidade que aquela meia hora com ele
lhe proporcionaria.
A porta do
café abriu-se e foi primavera em janeiro.
Olá, Ana!
ResponderEliminarPaixão assolapada, a dela: que resistiu ao passar dos anos, à esperança que com eles se foi e há já muito perdida.Talvez que fixação descreva melhor este seu comportamento "estranho", parte duma grande história de amor que não chegou a ser vivida...
O texto está muito bem construído; em volta de personagem tão fascinante e que de tão original ser, difícil se torna acreditar que alguma vez pudesse ter existido...e daí o maior mérito de quem lhe deu vida.
Um abraço e boa semana, e obrigado pelos simpáticos comentários.
Vitor