Do cimo do outeiro, via-se, bem perto,
a autoestrada, apesar de o ruído chegar distante.
Mas o que os seus olhos viam – esses olhos verdes onde sempre
coubera o mundo - eram os campos que, na sua meninice, percorria, sozinho ou
com os amigos, apanhando amoras que comia até a boca ficar completamente negra,
as calças rasgadas e os joelhos arranhados.
Ali, onde a fila de carros engrossava lentamente, ficara o
improvisado campo de futebol onde espetara um talo de couve numa perna, que lhe
provocara um buraco considerável e uma infeção grave.
Mais além, onde o camião TIR ultrapassava o pequeno carro
desportivo, os seus olhos viam a elevação do terreno por onde desciam, ele e os
amigos, nos carrinhos improvisados com tábuas velhas e rolamentos de camiões
que o dono da oficina da terra lhes oferecia.
Ao lado, parecia-lhe ver as pistas estreitas, mas
cuidadosamente construídas, palco das corridas de caricas, minuciosamente
decoradas para representarem as equipas de ciclismo da altura.
Maia adiante, os seus olhos penetravam no pinhal, que ainda
existia, para onde, já adolescente, corria a refugiar-se. Sozinho, saía de casa
com um livro debaixo do braço, algumas folhas de papel e um lápis, sem dizer –
como era seu costume, aliás – para onde ia, e, através de caminhos bordejados
de rosmaninho, embrenhava-se no meio das árvores. Sentava-se debaixo de um pinheiro,
lia os clássicos a que conseguia deitar a mão quando a Biblioteca Itinerante
passava na aldeia, escrevia o que a sua alma inocente e sonhadora lhe ditava e
adormecia numa sesta tranquila, embalado pela suave canto da brisa primaveril,
envolto nos reflexos do sol que perpassavam pelo meio das agulhas dos
pinheiros.
Recordava a arte de um ninho a sugerir o chilrear de mil voos,
o viço da folha a romper a terra num projeto de árvore, o sorriso grato das
flores à carícia do sol, o veludo da pétala a chorar a gota de orvalho, as
cores letárgicas de um fim de tarde. Por aqueles lugares pintava as cores das
primaveras, futuros em águas de sonho, trepava impossíveis.
Pesavam-lhe os anos nos passos da caminhada diária que
insistia em fazer. Envelhecera bem. Continuava a viver sozinho, porque se
recusava a incomodar os filhos e as noras. Não suportava a ideia de se sentir
um peso na vida dos outros e menos ainda a de se sentir tratado como um inútil.
Passar os dias a ouvir falarem-lhe aos gritos – essa mania de se pensar que
todos os velhos são surdos! – ou em tom infantilizado – essa mania de se pensar
que todos os velhos se tornam idiotas! – enfurecia-o. Sempre fora um homem
sereno, mas aos 89 anos os dias são claramente mais longos, a modorra do tempo
pesa mais. Daí que, há alguns meses, quando queria fugir e voar pelo tempo
antigo, tivesse ganho o hábito de percorrer, como podia, as ruas da sua aldeia
e chegar até onde conseguia, o mais perto possível dos lugares da sua infância,
encontrar-se consigo. Aquele era o seu lugar preferido. Sentava-se à sombra do
grande plátano e ninguém o incomodava. Não que por ali passasse muita gente.
Quase todos os familiares, amigos e conhecidos tinham morrido e os habitantes
da sua aldeia eram, agora, todos gentes importantes, demasiado ocupadas com os
seus pensamentos importantes sobre negócios importantes e outras gentes
importantes. Como as ondas do mar, gerações nascem, outras declinam. Quem
repararia num velho de outros tempos, de olhar e mente perdidos num tempo que lhes
parecia nunca ter acontecido?! E que se importassem! Se alguma coisa nele não
havia mudado era o caráter forte, intransigente, casmurro, como habitualmente
diziam. Não suportava a hipocrisia. Por isso, a poucos permitia, ainda, chegar
até ele. Paciência! O seu epitáfio mudaria tudo. Os epitáfios tendem a mudar o
passado. Talvez lhe devessem escrever: “Tudo em mim foi registado, sou o
arquivo da memória.”. Sem lamechices, como gostava.
Naquela manhã a saudade apertou-lhe mais o peito, pesou-lhe na
alma. A lembrança de todos os que haviam passado pela sua vida tornou-se mais
vívida. Sentiu todas as alegrias e todas as dores gravadas no corpo. Que marcas
teria deixado nas vidas que tocara?
Sabia que o tempo lhe escasseava. O médico falara-lhe,
vagamente, num problema de coração. Não se importara. A morte viria numa
distração. A certeza chegara-lhe num rasgo de luz. Como naquele momento
estranho quando, ainda quase criança, tudo o que lhe haviam ensinado na escola
tivesse começado a fazer sentido. Seria, então, assim. Era, então, aquele o
momento. Naqueles minutos que se lhe afiguravam tão importantes como todos os
outros da sua vida, continuou a sonhar como se fosse viver para sempre,
rasgando sombras da memória, escavando na alma até saborear a eternidade. A morte
é uma arte. Partiria como vivera: sozinho, serenamente. Em paz com todas as
decisões tomadas, as certas e as que, revelando-se erradas, aceitara como
acertadas. Nos últimos momentos um sorriso no rosto. Indecifrável. Como a
memória que levou no coração.
NOTA: Eu sei que o texto é longo ... mas o que fazer? Escrevo como falo: pelos cotovelos! Era lá capaz de cortar nos últimos minutos deste senhor! Ainda por cima deste senhor!
Ainda bem que não cortou nada, Ana.
ResponderEliminarEste é um texto maravilhoso que ao ser "encolhido" perderia o sei encanto.
Este Senhor viveu a sua vida de forma plena e sempre com o coração de criança.
Maravilhoso.
Parabéns
Beijo
Ná
Um coração de ouro ... que conheço bem.
EliminarObrigada, Ná:)
Gostei muito de ler, Ana, até ao fim lamentando, isso sim, que o digno protagonista partisse sozinho - mesmo reconhecendo como bem respeitável essa opção! -num tempo em que tantos cidadãos, sem alternativa, aparecem já sem vida após, por vezes, tanto tempo!
ResponderEliminarO que dirão os seus epitáfios?!...
Beijinho
jc
Joaquim, aposto que este senhor - felizmente bem vivo, de saúde e longe daquela idade - gostaria de partir assim. : ) Casmurrices!
EliminarOlá, Ana!
ResponderEliminarImagino que todos gostaríamos de partir assim; de mansinho, em paz, a contemplar as memórias da infância; que, "estranhamente", sendo as mais distantes, são também aquelas que mais perduram...
Gostei muito de ler, apesar do carácter triste do tema.
E quanto ao dilema entre o amor ao que se escreve, e o risco "de assustar os fregueses", não há solução à vista ... e aprovo a sua escolha.
Abraço amigo; bom fim de semana.
Vitor
Obrigada pela 'complacência', Vítor. :-)
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