O SÓTÃO
A
casa estava mergulhada no falso silêncio das rotineiras manhãs familiares.
Manuel lia o jornal, ainda sentado na enorme mesa da cozinha, depois de se ter
saciado com os dois pães frescos com manteiga e a gigantesca caneca do forte café
da Brasileira. O odor era tão intenso que inundava toda a casa. Manuel
sentia-se feliz. Voltara, na véspera, de mais uma viagem que correra muito bem
– vendera todos os artigos – e esperava-o uma semana de descanso, em família.
Era Carnaval e, portanto, as filhas, de sete e nove anos, encontravam-se de
férias do colégio. Naquele momento brincavam no sótão, enquanto a mulher
descera à porta da rua ao ouvir o pregão da senhora Carminda, a peixeira da
Figueira que sempre por ali passava, antes de ir vender ao mercado da cidade.
Sabia-lhe bem o silêncio da grande casa, acompanhado do burburinho distante das
brincadeiras das filhas e do palrear das gentes que, já manhã cedo, se
atarefavam numa azáfama tranquila, num tempo tranquilo.
O
lamento chegou-lhe ténue, quase indistinto. De mansinho subiu de tom e Manuel
pensou perceber um choro infantil. Ter-se-iam as meninas magoado? Como a mulher
tardasse em subir, e conhecendo bem as habituais traquinices das filhas que,
educadas em colégios, sempre cheias de folhos e rendas e controladas pela mão
férrea do ex sargento da GNR, mais pareciam dois rapazolas sem rei nem roque,
Manuel resolveu subir ao sótão.
Atravessou
o pátio interior que levava ao longo corredor. O som parecia-lhe mais
percetível. Era, decididamente, um choro. Começou a subir os dois lances de
escadas que levavam ao sótão, dividido por um hall em duas largas divisões. À
medida que subia, o coração ia-se-lhe apertando: o choro da filha mais nova
fazia-se ouvir num tom agudo de aflição. Tentou acalmar-se, pensando nas
travessuras de que as meninas eram capazes e nos sustos que já lhe haviam
pregado. Mas, ao colocar um pé no primeiro degrau do segundo lance das escadas,
sentiu-se gelar: ouvia, agora, distintamente, a voz da filha mais nova,
gritando “Ai a minha mana! Ai que grande desgraça!” Manuel sabia que devia
galgar os degraus rapidamente para acudir às crianças, mas o medo do que iria
encontrar quase lhe toldava os movimentos, fazendo-o deslocar-se, como num
pesadelo, num vagar enervante. Ao chegar ao hall do sótão, Manuel sabia já que
a vida, tal como a conhecia, terminara. Numa das diabruras habituais, a filha
mais velha magoara-se seriamente e morrera. Naqueles escassos e angustiantes
segundos, pensou na mulher cujo desgosto pela morte da criança também
pereceria. Lentamente, empurrou a porta ligeiramente entreaberta da divisão da
esquerda – a maior, a mais escura e, também, a mais apetecível para as filhas!
– e sentiu-se desfalecer: no meio da sala, a filha mais nova chorava,
compungida, de joelhos e mãos postas, junto do enorme e velho baú. Jazendo em
cima do tabuleiro que o encimava, estava o corpo da filha mais velha, quase
todo coberto por flores, o rosto tapado com um lenço branco e as pequeninas
mãos, sobressaindo, cruzadas sobre o peito. Agora era certo: a vida daquela
família terminara!
O
rangido da porta alertou, primeiro, a criança mais nova. Num salto mais rápido
do que o de uma gazela em perigo, levantou-se e afastou-se ligeiramente da mira
do pai.
-
Estava aí, paizinho?! - perguntou no tom mais doce que a inesperada chegada do
pai lhe permitiu.
Por
entre uma verdadeira chuva de flores, Manuel viu o corpo da “falecida” filha
levantar-se num voo de garça desajeitada e esconder-se, como pôde, atrás da
mais nova, líder incontestada do duo.
Manuel
sentia-se incapaz de sentir o que quer que fosse.
Na
vã tentativa de explicar a inusitada situação e conhecendo as fúrias que as
suas travessuras provocavam no pai, a mais velha explicou, atabalhoadamente,
sorrindo com um ar cândido:
-
Estávamos só a ensaiar para, mais logo, pregarmos uma partida de Carnaval à
mãezinha.
Apesar
da pouca idade, leram, na lividez e no olhar do pai, o terror provocado pelo
indubitável susto da mulher. Esgueirando-se pela porta, correram, como puderam,
pelas escadas abaixo, perseguidas pelo finalmente grito libertado do pai:
-
Mariiiiiiiiiina! Judiiiiiite!
Que saudades
destas tias!!!
Consegui pregar-me um susto, colocar-me no lugar do pobre pai destes "diabinhos", afinal suas tias -;)
ResponderEliminarConfesso que se estivesse no lugar do pai não sei o que lhes faria :))))
Beijinho
Ná
Olá, Ana!
ResponderEliminarBrincadeira de mau gosto, apetece dizer. Que felizmente terminou com um milagre a pôr fim a um susto, e certamente com uma renovada felicidade desse pai ao recuperar a filha que já dava como "morta"...
Abraço amigo.
Vitor