O
PASSARINHO E A SERPENTE
- Vem cá, passarinho, vem – chamava, insinuante, a
Serpente.
- Não, estou bem aqui – respondia, hesitante, o
Passarinho.
Há semanas que a Serpente cercava o indefeso passarinho,
aliciando-o para interessantes conversas de fins de tarde. Ciciava-lhe palavras
escorrendo mel, intervalando-as com outras saídas de afiados punhais, num subtil
jogo de avanços e recuos, de progressos e retrocessos. Sabia que o animalzinho,
apesar do seu ar frágil, não seria fácil de apanhar. Aliás, a princípio nem
sequer pretendia molestar o pequeno pássaro. Parecia-lhe demasiado
insignificante para perder tempo com ele, até porque outras vítimas de maior
porte e mais facilmente capturáveis a rodeavam frequentemente. Mas, a pouco e
pouco, começou a reparar no animalzito que por ali pipilava e no seu olhar
desafiante. Desafiá-la a ela, uma caçadora experiente e sabida!? Começou a
encontrar alguma graça naquele jogo, à partida desigual, e ao atrevimento da
avezita que não se fazia rogada nem recuava.
Por seu lado, o Passarinho, apesar de reconhecer o perigo
nos olhos malignantes e maliciosos da Serpente, não conseguia resistir à
atração que aquele abismo lhe provocava. Tinha (quase) a certeza de, no momento
final, conseguir afastar-se da morte programada pela pérfida. Assim, lá ia
jogando com as mesmas armas da contendora - o ataque e a defesa - consoante o
frágil equilíbrio em que se sustinham. Aliás, o Passarinho sentia cada vez mais
dificuldades em manter aquele jogo, pois a verdade é que, presunçoso como era,
parecera-lhe, inicialmente, que a vitória seria fácil. Agora, porém, começava a
perceber que subestimara a adversária.
Naquele dia, o fim de tarde revelara-se particularmente
quente. Apenas a sombra do frondoso choupo sob o qual costumavam encontrar-se –
a distância segura (para ambos!), refira-se – os protegia razoavelmente da
canícula vespertina. A Serpente mostrava-se particularmente sedutora e o pobre
Passarinho sentia-se ceder na vontade férrea do início daquele jogo. À medida
que, hipnotizado, se aproximava das mandíbulas aguçadas da Serpente, ia
perdendo a manha, a astúcia, o distanciamento que, até aí, o tinham mantido
firme no mesmo nível da adversária. Já esta, certa do desejado e iminente
sucesso, não desviava os seus olhos, flamejantes de vaidade, dos do pobre
pássaro. Mas, repentinamente, o brilho do olhar esmoreceu, as mandíbulas
começaram a fechar-se e uma expressão de verdadeiro espanto invadiu a Serpente.
A dois pulos da morte, o Passarinho parara. Num golpe de mestre exímio, começou
a metamorfosear-se. O corpo avolumou-se, o bico aguçou-se, garras e asas amontanharam-se e a Águia agigantou-se diante
da incredulidade da Serpente. Célere, rasou um voo inesperado sobre a
adversária e segurou-a com firmeza nas garras. Subiu por sobre o choupo e
foi-se afastando da floresta. Sempre com a Serpente bem segura nas garras,
sobrevoou campos, vales, rios. A pobre Serpente, sabendo o jogo perdido,
sentia-se também já perdida e esperava, a cada momento, estatelar-se no chão,
certa da maldade daquele “passarinho” que tão bem a tinha enganado.
Absorta nestes pensamentos, a Serpente mal se apercebeu
de que a noite caíra há alguns minutos quando, finalmente, a águia começou a
abrandar o voo, desceu sobre o cume de uma montanha e, com imenso cuidado, a pousou
junto de um enorme ninho.
- Da ponta daquele penhasco – apontou a Águia com o bico
– partem, todos os dias, as aves que ali vês. Nenhuma te fará mal. Poderás
viajar com elas até ao lugar onde vivias e voltar sempre que quiseres … ou não.
Altiva, e sem esperar resposta, a Águia virou-se e
dirigiu-se ao ninho.
Serpenteando por entre a escassa vegetação do lugar, sem
pressa, a Serpente subiu ao ninho da Águia, encostou o seu frio ao calor dela,
ergueu a cabeça e ambas se quedaram, lado a lado, de olhos fixos na mesma linha
do horizonte.
A viagem começava ali.
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