A Honra e a Vilania
Era uma vez um lago no meio de um bosque. De dia, os raios de sol
serpenteavam por entre as árvores. À noite, o luar de prata espraiava-se
naquele manto de água que lembrava um imenso espelho.
Por entre a relva verde e macia que
beijava aquelas águas cristalinas, nascera uma margarida. Era uma flor de
beleza suave e delicada, apesar das cores intensas que roubara ao pôr-do-sol. Alegre,
agitada, curiosa, de espírito vivo, Margarida já fora, em vida anterior, um
belíssimo pássaro azul. Morta por um tiro certeiro de um caçador que não a
encontrara, caíra naquele chão e, do seu corpo apodrecido, nascera naquela
belíssima flor. A alguma distância, conseguia vislumbrar uma fileira de árvores
das quais, nos fins de tarde, se evolavam agitados chilreios de quem procura
abrigo. Os pássaros costumavam ir beber da frescura das águas do lago,
saltitando, alegremente, nas suas margens. Eram, sobretudo, eles que saciavam
a curiosidade de Margarida em relação ao mundo que não conseguia tocar.
Certa manhã quente de verão, depois de
uma breve chuva densa e sufocante que limpara o pó que bailava no ar, Margarida
ouviu um chilrear único. Bem perto de si, erguia-se um pedestal de mármore, com
cerca de meio metro de altura, que servira, há muito tempo atrás, de suporte a
um busto que dali havia sido retirado. O pedestal, no entanto, permanecera. No
cimo, um pequeno melro preto, que, há alguns dias, ali vinha fazer a corte à
pequena flor, debatia-se, tentando libertar a pata que ficara presa.
Solícita, e sentindo-se responsável
pela situação, Margarida ofereceu o conforto possível das palavras de quem
também nascera com asas na alma, mas se tornara cativa. Nada havia a fazer, no
entanto. O pequeno pássaro por ali ficou, sendo alimentado pelos companheiros,
que lhe traziam insetos, vermes, larvas, enfim, todo o tipo de petiscos.
A Margarida sabia-lhe bem aquela
companhia. Flor e pássaro foram-se descobrindo, numa partilha de almas, de
afetos, de sentires, nunca antes por ambos julgada possível entre dois seres
tão diferentes. Ela ensinava-lhe a jovialidade, a alegria de viver, ainda que
presa à terra, a tagarelice de quem se sentia sempre ávida de vida … Ele
ensinava-lhe os cheiros de outros lugares, que ela já tinha esquecido, a textura
das árvores, as cores da terra, a serenidade … Assim, a vida ia correndo num
crescendo de afetos.
No entanto, algo incomodava Margarida:
de cada vez que o melro mostrava as suas qualidades – características
positivas, como, modestamente, lhes chamava -, o pedestal elevava-se um pouco.
Margarida conseguia até identificar, com alguma precisão, o número de
centímetros que correspondia a cada virtude: 1 cm para a honestidade, 2 para a
honra, 3 para a lealdade, 4 para a frontalidade. Ora, como é óbvio, cada vez
mais as altivamente proclamadas qualidades do melro o afastavam da pequena flor
que começava a acusar a estranheza do facto e o seu desagrado. Ainda para mais,
o pássaro, lá do alto do seu pedestal, recusava-se a conversar sobre o assunto.
Também não gostava nada das censuras que o melro lhe dirigia quando a via
conversar com outros pássaros que por ali esvoaçavam, de vez em quando. Ora,
Margarida que, apesar de alegre, simpática e doce, tinha os seus momentos de
flor que não se cheira, começou, também, a questionar a forma como o melro
fingia que ela não fazia parte da sua vida
quando familiares e amigos o visitavam. A principio não se sentia excluída,
porque o pássaro, fazendo jus à irrepreensível
retidão de caráter que altivamente alardeava, assegurava-lhe que, quando
os companheiros pousavam junto dele, eram ela e a importância que detinha na sua
nova vida o tema de conversa. Jurava-lhe que era ela e só ela a detentora
daquele nobre sentimento que lhe enchia a alma. Mas a distância e o
distanciamento do melro fizeram-na ponderar melhor a situação.
Cetra noite, decidiu não prolongar mais
a tristeza que a invadia. Despediu-se cedo do melro, fechou as pétalas como preparando-se
para dormir, mas manteve-se alerta. Nada a tinha preparado para aquilo a que
iria assistir. Durante toda a noite, foram passando, pelo alto do pedestal,
folhas e flores trazidas nas asas da brisa suave, e vários pássaros- fêmea. A
cada uma o melro alardeava a sua honra, a integridade do seu caráter, a sua
honestidade. E a cada conquista o melro oferecia o seu canto melodioso, num
gorgeio grave, aflautado. A cada virtude quebrada, uma fissura se estirava pelo
pedestal. A madrugada, já húmida e fria, veio encontrar o melro a hipotecar a
seriedade do seu amor a uma andorinha, que partiu convicta da nobreza do
pássaro. Um belíssimo prototipo de melro: geneticamente poligâmico, embora
socialmente monogâmico! Dezenas de cicatrizes subiam pelo pedestal. Marcas da
vilania, da mentira, da falsidade, da deslealdade! …
Em baixo, sem refrear o mar agitado de
emoções que lhe percorriam a alma, a pequena margarida ergueu o caule. As
pétalas, baças, enrugadas e secas, desenharam ,no ar, imaginários golpes. Num
esforço sobrefloral, Margarida esticou-se, quase arrancando as raízes da terra,
abanou o pedestal altaneiro que, ao primeiro embate, se desmoronou no chão.
Aturdido com a queda, o melro olhou
para a pequena flor que quase não reconheceu nas palavras que lhe dirigiu:
- Ofereço-te a liberdade … mas
destrono-te do pedestal em que te coloquei!
Percebendo ter sido apanhado, o melro
ajeitou as penas, compos o seu habitual ar de criatura moralmente superior e
voou em direção ao luar, que já desmaiava no alto, em busca de nova vítima.
E assim acontece tantas vezes na vida ... tantas que me arrepie e me revi neste conto maravilhoso.
ResponderEliminarGostava muito de o poder partilhar, publicando-o no meu próximo post.
Estou autorizada???
Beijinho
Ná
Olá, Ana!
ResponderEliminarColocar num pedestal qualquer que seja o melro, é sempre um risco...com que nem sempre aprendemos.Este, então, era fresco...
Abraço; até ao próximo.
Vitor