... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

EBOOKS

    Tive, recentemente, conhecimento de alguns sites que permitem a leitura grátis de ebooks. Deixo apenas o endereço do único que testei. Espero, em breve, acrescentar outros.

    http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes.html

    Embora nada se compare à sensação do livro nas nossas mãos, esta é uma opção viável para quem gosta mesmo de ler.

UMA NOITE NÃO SÃO DIAS

    Mais uma crónica de costumes de Mário Zambujal. Desta vez a ação passa-se em 2044. Para além de situações hilariantes caricaturadas pelo autor, dois roubos perpassam pela história, embora pareça que só existem como suporte das personagens que se movem em torno deles. Apesar dos avanços tecnológicos, a dimensão humana mantém-se com os sentimentos de sempre: o amor, o desejo, o ciúme, a traição ... Temas universais e intemporais!

    Mário Zambujal nasceu em Moura, em 5 de Março de 1936. Como jornalista colaborou em vários programas de televisão e jornais, como A Bola, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Tal & Qual, Se7e, Record e 24 Horas. Como escritor publicou Crónica dos Bons Malandros, 1980, Histórias do Fim da Rua, 1983, À Noite Logo se Vê, 1986, Fora de Mão, 2003, Primeiro as Senhoras, 2006, Já Não Se Escrevem Cartas de Amor, 2008.

CASTELOS NO AR



     Era uma vez um castelo no ar.     


    Tal como acontece com qualquer obra arquitectónica que se preze, a ideia tinha sido concebida há muito, muito tempo atrás. Mas, tratava-se meramente de um esboço, uma ainda quase-ideia nebulosa, imprecisa, mal definida. Nenhum dragão o guardava, nenhuma chave o encerrava.
     A certa altura, porém, certo viajante por ali passou e uma pedra assentou. Por graça, a arquitecta outra pedra acrescentou. E, assim, a ideia começou a ganhar forma, a ganhar corpo. Pedra a pedra – ambos tinham guardado todas em que tinham tropeçado, nos seus caminhos -, os talhos do castelo foram-se tornando consistentes. Construído com vagar, com paciência, a cada dia que passava as altaneiras torres iam tomando cor. Tudo à sua volta se ia iluminando. Viajante e arquitecta compuseram um arco-íris que pintava as paredes do castelo com cores impensáveis. À noite, estrelas flamantes riscavam o céu, cavalgavam sonhos e incendiavam o cenário idílico, envolvendo o castelo em luminárias resplandescentes.
     Mas, a dado momento, vago, e cuja inexactidão não interessa aos nossos leitores, a luzência que cercava o castelo começou a dissipar-se. A princípio mal se notava. Era apenas uma ligeira poeira que obstruía, tenuemente, a luminosidade. Como se tratava de algo pouco perceptível, ninguém se preocupou em indagar a causa de tal alteração. E, assim, a poeira foi-se adensando, lentamente, sitiando o castelo numa bruma espessa, cinzenta. O arco-íris empalideceu até se desvanecerem, por completo, as suas cores. As estrelas, desiludidas, foram-se extinguindo. Em pouco tempo, o castelo no ar voltou ao estado primário de esboço impreciso, uma quase-ideia nebulosa.
    Era uma vez um castelo no ar.


domingo, 28 de agosto de 2011


A NOIVA



A tarde apresentava-se quente e soturna. Há duas horas que se encontrava naquele salão atulhado de gente, de vozes, de móveis, de pensamentos. O vestido colava-se-lhe à pele, os sapatos apertavam-lhe os pés e os ganchos que lhe seguravam o cabelo num arrojado penteado, suspenso da grinalda de flores brancas – uma quase súplica do noivo -, arranhavam-lhe o couro cabeludo. A ostentação da festa, cereja podre no topo do bolo rançoso que era a sua vida, dava-lhe náuseas. Não era o casamento dos seus sonhos, não era o marido dos seus sonhos, a sua nunca fora a vida dos seus sonhos. Sentia-se sufocar de calor, de comida e de gente.
Aproveitando um instante de maior confusão, a noiva esgueirou-se pela ampla porta que dava acesso a um corredor que a tiraria dali rapidamente. Ao passar pelo belíssimo espelho de estilo regência, datado do século XVIII, à sua direita, suspirou. Não era bonita. Baixa, anafada, de pele trigueira e banais olhos castanhos, sentia-se, agora, ridícula naquele longo vestido cheio de folhos e rendas que a desfavorecia, claramente.
Por entre sorrisos e cumprimentos conseguiu chegar à entrada do luxuoso hotel. Desceu os poucos degraus que a separavam do exterior, ignorou a fonte seca com que se deparou e virou à direita. Não estranhou a solidão do local atribuindo-a ao calor abafado que se fazia sentir. Agradou-lhe aquela liberdade e seguiu pelo estreito passeio que acompanhava o edifício contíguo ao hotel. Todas as portas estavam encerradas, mas lembrava-se bem do interior de cada uma. Parou junto à entrada da velha loja de brinquedos onde, quando era pequena, a madrinha a tinha levado. “Escolhe o brinquedo que mais te agradar”, dissera. Os padrinhos eram pessoas endinheiradas e costumavam passar férias naquele complexo termal. Todos estranharam quando a menina escolheu o boneco mais feio que havia na loja. Grão-de-bico, passou a chamar-se. A madrinha, consternada com aquela escolha, incentivou-a a escolher, ainda, outro brinquedo. A cadeirinha vermelha de madeira polida e brilhante resistiu mais tempo que o malfadado boneco.
Continuou pelo passeio e, ao verificar que o pequeno café que ainda ali existia estava fechado, atravessou o largo e desceu por um estreito carreiro de terra batida. Já não se lembrava bem daquele caminho, mas a necessidade de se afastar do salão onde decorria a boda fê-la continuar. O calor aumentava e o vestido de folhos mostrava já enormes manchas de suor. Aflita, tirou os sapatos que quase não a deixavam respirar. De qualquer forma, mais tarde, ninguém perceberia a sujidade dos seus pés por baixo daquele espaventoso vestido.
A terra batida dera lugar a uma espécie de areia grossa cheia de pedras. Cheirava-lhe a água. E então viu-o. Verde, lodacento, umbroso. Do seu lado esquerdo, o lago quedava-se, silencioso, por entre algumas canas e árvores finas cujos nomes desconhecia. Instintivamente, encostou-se ao mato, à sua direita. Não gostava de água. Não se tratava de uma fobia, mas nunca mostrara apetência para o que quer que fosse que se relacionasse com água. Daquele lago, sobretudo. Lembrou-se, então, de que, mesmo quando era pequena e ali ia, com os pais, visitar os padrinhos, e o lago estava cheio de crianças que se divertiam a passear nas “gaivotas”, ela recuava sempre. O lago intimidava-a, arrepiava-a. E, agora, mulher adulta, no dia do seu casamento, tinha ido parar precisamente ali. A ideia de voltar para trás punha-lhe um nó na garganta. Avançou uns passos e, aos poucos, sempre afastada da margem, foi ganhando confiança no passeio.
Repentinamente, uma curva do caminho desenhou, na sua frente, uma ponte de madeira, com cerca de 15 metros de comprimento. Lembrava-se que, por baixo, passavam, antigamente, os risos das crianças, os gritinhos das raparigas e os sussurros dos namorados tranquilizando-as. Era preciso baixar a cabeça para se conseguir passar nas domingueiras “gaivotas” vestidas de verde, amarelo e vermelho. Mas, agora, nem o canto dos pássaros se ouvia. O silêncio fazia-se sentir como uma presença humana. Tal como a humidade.
A noiva começou a subir a ponte. Por baixo, a água, parada, por entre os velhos barrotes de madeira. Parou ao chegar ao cimo, a parte mais alta. Sentia-se estranha. Sempre se afastara daquele local e, agora, pelo contrário não conseguia afastar-se dele. A ponte parecia-lhe cada vez menos segura. No sítio onde parara, precisamente, os barrotes de madeira, cruzados, que serviam de corrimão, estavam partidos, carcomidos pelo desgaste do tempo, da humidade e da falta de manutenção.
Mas os olhos da noiva estavam fixos na água lodosa. A imagem desenhava-se, distorcida, bem lá no fundo. Uma alga branca, provavelmente. O ribombar do trovão foi como um choque eléctrico. Desviou o olhar para o céu que se tornara escuro. Nem relâmpago nem chuva. Só o trovão. Seco. Ameaçador. Baixou, novamente, os olhos. A alga continuava branca. E sorria. Um sorriso disforme, um esgar, que ondulava num rosto visivelmente de mulher. A noiva não conseguia despregar os olhos da figura. Baixou-se. Algo se desprendia da imagem e subia até ao cimo da água. A viscosidade colava-se-lhe à pele como uma garra. Um véu. Branco. De renda. Flutuava mesmo ali. Esticou-se. Sabia que conseguiria tocar-lhe. Esticou o braço. Se se esticasse mais um pouco. Só mais um pouco …


* * *

A noite chegara mais abafada que o dia. Pesada, lúgubre. Algumas luzes piscavam ainda no portão de ferro que servia de entrada ao espaço termal. Os últimos convidados saíam num silêncio de luto inesperado, improvável.

Sentado nos degraus da velha loja de brinquedos, o noivo fixava o pequeno lago que a grinalda de flores brancas, nas suas mãos, ia formando no chão. Um lago verde, lodacento, umbroso …

sexta-feira, 26 de agosto de 2011


EFABULAÇÕES DE UMA TÍBIA


    Ouvia, aterrada, o som que, em poucos segundos, passara de um ruído ciciante, que lhe lembrava uma broca de dentista, a um barulho estridente, ensurdecedor. A senhora da serra eléctrica, qual personagem de um filme de terror de série B, dirigia-se para eles, ostentando, estranhamente, um sorriso amistoso. Continuava a tagarelar por baixo do som atroador. Seria o fim? Mas se tudo não passara de um arrufo de namorados! Encolheu-se o mais que pôde e ouviu, então – finalmente! -, a voz dele:

     - Tíbia!
     Ah, pois! Agora que o fim se aproximava a dentes largos e nada mais havia a fazer é que ele se dignava falar-lhe! Tipicamente masculino!
É certo que tinha consciência de ter sido ela a causadora daquela situação. A causadora, não a responsável! O rompimento dera-se há duas semanas e meia, mas a situação arrastava-se há muito mais tempo. Não conseguia determinar quando é que ele começara a desinteressar-se dela. A verdade é que não era osso de meias-palavras, de deixar o que quer que fosse por dizer. Por isso, depois de várias insinuações e provocações, explicou-lhe que se sentia incomodada com o rumo que tinha tomado aquela relação. Namoravam há dois anos, é certo, e pressupunha-se até que os arroubos dos primeiros tempos tivessem diminuído de intensidade. Mas, como amigos tinha ela o fémur, com quem conversava diariamente, o rádio, que frequentemente se deixava dependurar para lhe dar notícias do que se passava no esqueleto, mais acima, e o tarso, que estava sempre ansioso por trocar não dois, mas vários dos seus dedos por conversas. No início, Perónio fazia-se desentendido e não respondia às provocações dela. Mas, confrontado com o pragmatismo daquele osso insistente lá foi deixando cair a ideia de que algo no comportamento da Tíbia o tinha levado àquele afastamento. Ela bem insistiu para que ele fosse claro, directo, não rodeasse a questão. Mas ele manteve-se firme naquele limbo do não-sei-se-diga, não-sei-se-conte. Ora Tíbia, osso longo e robusto, não menos duro de roer do que o casmurro Perónio, armou-se de brios e deixou bem claro que ossos adultos não deveriam comportar-se como ossinhos mimados. Se não queria esclarecer a situação, mesmo sabendo que o seu silêncio a magoava, o melhor seria separarem-se. Veria com quantas células se constrói uma tíbia! Ele manteve-se quieto. E, assim, naquela noite de Primavera anunciada, Tíbia e Perónio, com um quebrar de ossos estriduloso fracturaram-se, na disposição de se manterem de ossos voltados para sempre.

    No entanto, tal proeza não era fácil de sustentar. Algumas horas depois, duas mãos envolveram-nos numa matéria branca, molhada e robusta. Condenados por três longos meses àquela prisão, com o objectivo de voltarem a juntar-se, consolidando-se, assim, para sempre, nenhum dos dois queria ceder. Durante as primeiras 48 horas resistiram o mais que puderam, mas o esforço físico necessário era demasiado intenso e, confinados ao exíguo espaço que lhes tolhia os movimentos, começaram a deixar ceder a matéria sem, contudo, se permitirem um olhar ou uma palavra. E agora ali estavam. Iam convictos de que as mesmas mãos experientes que os haviam encerrado há duas semanas e meia lhes mudassem a prisão para uma mais suave, por bom comportamento.

     Os dentes de aço rasaram a prisão branca e gelada. Célula a célula, Tíbia e Perónio começaram a juntar-se. Mas já nada havia a fazer. A roda dentada estava a poucos milímetros da pele e em poucos segundos rasgaria a carne que os protegia, estraçalhando-os num ápice. Preparam-se para o fim.

     Subitamente, o barulho cessou. A senhora da serra eléctrica abriu a prisão como se de uma casca de ovo se tratasse. Hidratou a pele da perna e as conhecidas mãos experientes voltaram a construir à volta de Tíbia e de Perónio uma nova prisão. Branca, mas mais leve e menos fria. Um prémio pela subtil cedência de ambos? Talvez. Tíbia e Perónio tinham, ainda, dois longos meses de cárcere forçado … e uma questão de afectos para resolver! …

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

LEMBRA-TE

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny, in "Pena Capital"
 

O MAR EM CASABLANCA


Num estilo cinematográfico, o autor faz o detective Jaime Ramos viajar pelo Porto, cidade onde vive, Vidago, Chaves, Angola, Venezuela, Casablanca – espaço metafórico, símbolo de liberdade -, na bem-sucedida tentativa de desvendar dois crimes, inicialmente sem relação aparente entre si, e, mais tarde, um terceiro homicídio. A par da trama policial assistimos a um olhar deste anti-herói, que se sente envelhecer, sobre o seu próprio passado, suscitado pelas circunstâncias dos crimes.


Foi o primeiro livro que li de Francisco José Viegas e gostei muito. A zona do Douro é-me particularmente querida e a descrição daquele espaço, no livro, é extraordinária. Enterneceu-me, também, a relação que Jaime Ramos mantém com Rosa: aparentemente desprendida, mas, afinal, profundamente intensa. Um excelente livro.

O INVERNO DA VIDA



A pequena vila não passava de uma estrada relativamente estreita que serpenteava pela serra acima, recortada por cerca de meia dúzia de ruelas à direita de quem a subia.
Ao chegarem à pequena praça da Câmara Municipal, estacionaram o carro e saíram para fruírem do tímido sol de inverno que tão bem sabia depois de um longuíssimo mês de chuvas intensas e nuvens negras.
Atravessaram o pequeno jardim, atapetado por calçada portuguesa e alguns canteiros de relva verde e bem aparada, passando por alguns bancos de madeira e árvores recentemente podadas, até chegarem ao gradeamento que protegia a praça do precipício da serra que, ali, descia em escarpa ainda húmida das últimas chuvas. Sentaram-se nos bancos individuais de pedra que cortavam as grades de ferro a apreciarem a paisagem. Um deslumbramento! O rio corria, em baixo, separando a estrada estreitíssima do lado de cá da pequena praia fluvial do lado de lá. A língua de areia dava rapidamente lugar à serra que subia sinuosa e íngreme até se perder de vista.
O velho surgiu de um dos cantos do jardim, junto à pastelaria, privilegiadamente situada mesmo junto à ravina. Andava na direcção delas e ali parou, procurando conversa.
- Então vieram dar uma voltinha. Não são de cá.
Francisca, pouco dada a conversas com estranhos, ofereceu ao homem um sorriso amarelo, desencorajador. Mas, Clara retorquiu imediatamente:
- Não, não somos de cá. Viemos passear e apanhar sol.
O homem aproveitou a abertura e por ali ficou à conversa. Era alto e bem constituído. Apesar da idade avançada e da bengala em que se apoiava, mantinha uma postura direita e um olhar directo, sem constrangimento nem arrogância. Contou uma ou duas anedotas, declamou uns versos populares sobre a vila e, depois de uma brincadeira sobre o cemitério que se avistava do outro lado, aconselhou-as a visitarem o Penedo de Castro.
- Só falta a neve para aqui termos as montanhas da Suíça.
Estranharam que um homem claramente nascido naquele lugar soubesse alguma coisa sobre as montanhas da Suíça.
- Fui camionista de longo curso, durante muitos anos, conheço a Europa quase toda.
E assim lhes foi falando da vida preenchida que levara. Viagens, mulheres, negócios … Ouviam-no estupefactas. Não sendo literato, o homem era um excelente conversador, tinha um discurso fluente e conhecia o mundo.
Ainda lhes falou sobre a sua juventude, quando trabalhava na cidade a uns escassos vinte quilómetros da vila. Puseram-se a imaginar como seria a viagem, feita de bicicleta, em pleno Inverno, por uma estrada em condições péssimas. Contou-lhes, orgulhoso, como tinha salvo, uma vez, a vida a um conterrâneo que sofrera um acidente, junto ao rio. Uma época em que a morte ainda era uma tragédia e em que poucos morriam sozinhos.
A conversa foi esmorecendo e as duas mulheres despediram-se. Uma pequena volta de carro até fora da vila e, ao retornarem pelo mesmo caminho, voltaram a ver o velho que descia a estrada, ainda perto da praça onde o tinham deixado.
Clara ficou a vê-lo pelo espelho retrovisor. Quando o homem desapareceu, uma sensação estranha a invadiu. A lembrança daquele homem, agora velho e sozinho, mas outrora cheio de vida, juventude e força acompanhá-la-ia durante toda a viagem. Seria assim também com ela? Chegaria um tempo em que ninguém reconheceria nela a mulher de agora? Também ela viveria um dia apenas de lembranças? Apertou-se-lhe o coração ao pensar como seria o Inverno da sua própria vida …

quarta-feira, 24 de agosto de 2011


NOITE ENAMORADA


    Aquele recanto do quarto encontrava-se quase na penumbra, iluminado, difusamente, pela luz das velas espalhadas pela sala. Há mais de uma hora que anoitecera. A mesa estava posta para dois. A louça da Vista Alegre, os talheres e o castiçal de prata, os cristais Strauss, a toalha de linho branco bordada. Tudo limpo e meticulosamente arrumado. Só faltavas tu. A casa esperava-te.

     Pelo canto da gaveta da cómoda uma ponta de tecido preto espreitava. Na quietude do ambiente sentia-se atento. Um movimento quase imperceptível, um aroma diferente alertaram-no. Como uma serpente, silencioso e ondulante, o meu vestido preto deslizou para fora da gaveta. A seda gemeu ao roçar na madeira. Dengoso, o meu vestido preto aproximou-se da porta do quarto, ergueu-se e passeou-se pelo corredor. Era um vestido elegante, justo, com um decote generoso, alças finas e saia em viés. Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. Mas era a sala que o atraía. Meio escondido por um móvel, espreitou.

    Apesar de ser Inverno, a noite estava estranhamente tépida. Por isso, uma janela da sala encontrava-se ligeiramente entreaberta. Pela estreita frecha, dissimulada por trás do cortinado, a manga da tua camisa branca ondulava. No tecido alvíssimo brilhava um dos botões de punho que eu te oferecera há precisamente um ano atrás, no Dia dos Namorados.

     O meu vestido preto deslizou, encostado à parede, para dentro da sala. A tua camisa branca escorregou, brandamente, pela janela até passar pelo cortinado. Ficaram assim uns segundos. Cada um num canto da sala. Olhando-se insinuantemente. Devagar, moveram-se num jogo de sedução de avanços e recuos. Lentamente, foram-se aproximando um do outro e, em pouco tempo, encontravam-se frente a frente. Dissimuladamente, a ponta da saia do meu vestido preto rasou a ponta da tua camisa banca. Com um movimento lento, mas seguro, a manga da tua camisa enlaçou a cintura do meu vestido. E ambos iniciaram uma dança lenta, deslizando pela sala, ao som da música suave. A alça do meu vestido preto deixou-se tombar sobre o ombro da tua camisa branca que se apertou um pouco mais contra ele. Coquete, o meu vestido preto soltou-se da tua camisa branca e afastou-se, bamboleando-se. Mas a manga da tua camisa puxou o meu vestido com suavidade e firmeza. Aos poucos, o ritmo da dança foi aumentando e ambos rodopiavam já freneticamente pela sala. Num ritmo insensato o meu vestido preto e a tua camisa branca enredavam-se numa exaltação sem limites. E eram já alças, botões, negros, brancos, que se roçavam, entrelaçavam, enredavam. Pelos móveis escorriam sedas, deleitavam-se bainhas, costuras e colarinhos. A música pulsava nas fibras, inaudível. Lançados num precipício, o meu vestido preto e a tua camisa branca desciam, vertiginosamente. E, num último êxtase, o tempo parou. Suspensos, suportaram-se, fugazmente, e abandonaram-se, finalmente, numa queda ondulante até ao fundo do repouso.

*

     Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. A sala continuava meticulosamente arrumada. Só no sofá o meu vestido preto e a tua camisa branca repousavam, languidamente, entrelaçados.