... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013


SAUDADE

     Esta noite tem o diâmetro de um campo que demora uma canseira de pernas a rodear. Lá fora, o silêncio pela rua carrega um bêbedo.
     Nas horas paradas da noite caminho dentro de mim. Trago comigo todos os caminhos do mundo.
     Esta mão gelada sobre o coração e a saudade que não cabe nele, escorre pelos olhos. Corda do tormento, enrolada na tortura da dor, nó cego na alma a dizer para onde quer voltar, fome de comer a presença que falta.
     A saudade dói como um murro no estômago. O coração para e a tristeza sobe à garganta, bem apertada, até que as lágrimas vêm em nosso auxílio. Depois, fechamos os olhos e aceitamos. Mas dói aceitar.
     A saudade não se cura. Suaviza-se. Só que, um dia, quando já não nos lembramos, acaba por voltar em pezinhos de lã.
     O passado é um armário cheio de esqueletos e fantasmas…

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


UM PAI ENTRE FILHAS

A manhã mal ía a meio, quando o pai irrompeu pela sala, com cara de muito poucos amigos, perguntando:
- Onde é que está a Marina?
A segunda filha, habituada aos disparates que ela própria e a irmã mais velha costumavam fazer desde pequenas e às fúrias do pai, sabia bem como amolecer-lhe o coração.
- Não sei, paizinho, a Marininha não está em casa, deve ter ido ao mercado – respondeu, com o ar mais inocente que conseguiu compor.
Mas, desta vez, o pai não parecia disposto a deixar-se divertir com os trejeitos claramente forçados daquela filha. Criar quatro raparigas não estava a ser tarefa fácil, apesar do que era pressuposto na primeira metade do século XX. É que as que lhe tinham calhado em sorte pareciam arraçadas do Diabo! Nem a mais nova, nascida dezassete anos depois da primeira – fora da época!, como dizia a mulher -, parecia augurar qualquer facilidade.
Mesmo assim, a mais velha passara das marcas! Uma menina de família a namorar, à noite, à porta da rua! Pior: dentro do átrio da entrada! Num vão de escadas! A cara caíra-lhe de vergonha quando um vizinho lhe contara. Mas o patife do Pipi ia ver-se com ele! Pipi era o diminutivo meio carinhoso meio trocista colocado ao desafortunado pela irmã mais nova, resultado de alguns subornos, tais como o cestinho de verga com que a presenteara e o dinheiro que lhe dava para ela ir comprar rebuçados, enquanto namorava “tranquilamente” a irmã mais velha.
Ah, mas a filha, essa ía aprender o que acontecia às meninas que desobedeciam a ordens expressas do pai: “Não namorar sozinha!”, ”Não namorar à noite!”. Deveria ter imposto uma única e simples regra: ”Não namorar!”. Diacho da rapariga! A quem teria saído assim namoradeira? À mãe não, com certeza. Devia era fechar as quatro num convento. Enfim, era no que dava viver numa casa só de mulheres!
Fechado no sótão, absorto nestes pensamentos, ouviu o som da cancela da porta a fechar-se. Levantou-se, respirou fundo e … perdeu os preciosos segundos que seriam responsáveis pela vergonha que lhe sucederia.
Quando chegou à sala, voltou a encontrar a segunda filha novamente sozinha.
- Onde é que se meteu a tua irmã, Judite?
Perante o ar ameaçador do pai e o cinto que ele ostentava na mão, a rapariga, aterrorizada, deixou-se trair pelo olhar de aflição que dirigiu à cama dos pais que se vislumbrava através da porta entreaberta.
Ao ouvir o vozeirão atroador do pai, acorriam, já, à sala, a mãe e as outras duas irmãs mais novas.
De cócoras, junto à cama debaixo da qual a filha mais velha se escondera, o pai raspava o cinto no chão, tentando puxá-la para fora.
- Manuel, nãoooooooo!!! – ainda lhe gritou a mulher.
Mas, já o bacio, cheio de uma noite longa, se entornava em cima do pobre homem que, segundo reza a História, era asseadíssimo!
Perante a desgraça, divididas entre a aflição, a comiseração ou o riso, as cinco não resistiram ao último e as gargalhadas rebentaram pelo quarto, espalhando-se em ondas de afeto!
Quanto à reação do pai, nunca nada foi comentado na família.
Do “inocente” Pipi não mais se soube (embora lá em casa houvesse uma espada e um revólver!).
Ao longo de vários anos, vários outros namorados terão sobrevivido à vivacidade das quatro raparigas, à vigilância apertada da mãe e às fúrias de um pai que, certamente, terá sentido um imenso alívio ao casar a última filha!

(Sempre saudades destas tias!)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013


AMANTES DOS REIS DE PORTUGAL

            Histórias da História. Paixões arrebatadoras, casos efémeros, filhos ilegítimos, amores ilícitos (?) entre reis e damas das rainhas, prostitutas, barregãs, negras, escravas, cantoras líricas, atrizes, mulheres do povo ou senhoras da alta burguesia. Todas estas amantes competiam pela atenção e pelos favores do rei e muitas delas, umas célebres, outras nem por isso, desempenharam papéis de destaque na época em que viveram e rivalizaram mesmo com as figuras das rainhas. Mas, a par da fogosidade dos reis, em casos de hetero e homossexualidade, aborda-se, também, a sugestão de impotência de alguns deles e as aventuras amorosas de algumas rainhas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


                                                                                           TAITAI                               

            A Taitai chegou àquela que viria a ser a minha primeira casa cerca de cinco anos antes de mim. Quase recém nascida tornou-se, obviamente, o bibelot da família: biberon, mimos e tudo aquilo a que uma gata de boas famílias que se preze tem direito. Dona e senhora da casa – aliás, todo o prédio de dois andares estava por conta dela! -, não lhe agradou a minha chegada. Portanto, logo que nasci, tornei-me num alvo mais apetecível que qualquer mísero roedor que sofresse o infortúnio de se cruzar com a temível gata.
 Temível, sim! A bicha infernizou-me durante os meus primeiros seis anos de vida. É certo que nunca me fiz de novas e retribui sempre na mesma moeda. O carrinho das bonecas, por exemplo, era o meu instrumento preferido de tortura – ao longo do comprido corredor, passeava-a dentro dele, tapada com um cobertor, sob os olhos vigilantes da minha mãe que, apesar das inúmeras e constantes tentativas de nos aproximar, sabia que a bicha não era flor que se cheirasse.
Mas havia outras formas de me vingar daquela vez em que a minha avó a tinha encontrado com as patas dianteiras pousadas em cima do meu berço a olhar-me fixamente, enquanto bufava de dentes aguçados e pelo eriçado.
Seis anos depois de muitos odiozinhos mútuos, a Taitai finou-se. Conta a lenda familiar que a gata esperou que a minha mãe – o ser que ela mais amava no mundo! – chegasse do cinema para morrer nos braços dela. Naquela noite, ninguém me deixou aproximar da gata. De manhã, o meu pai pô-la dentro de uma caixinha de sapatos e foi sepultá-la no Choupal.
Todos devíamos morrer nos braços daqueles que amamos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


HOSPITAL DAS BONECAS

            E de repente aquele cheiro. Cheiro de boneca antiga. Lembrei-me da minha boneca Cindy (logo eu que nunca fui de brincar com bonecas!).
Esta foi, com certeza, a avó da Barbie. Ao contrário das bonecas da época, a Cindy era magérrima. Alta, esguia, de cabelos loiros, compridos, olhos azuis e a pele de um bege rosado. A minha tinha, também, já, um considerável guarda roupa confecionado pela minha mãe (santa paciência de mãe!). Destacava-se um elegantíssimo vestido de organdi vermelho, corpo justo, sem mangas (mas, também, sem decote!), com saia cortada em três farfalhudos folhos.
            Um dia, a Cindy perdeu a cabeça. Literalmente. (Apetecia-me comentar “Como acontece a qualquer loira que se preze.”, mas sou amiga de loiras tão interessantes e de morenas tão ocas que deixo espaço para tal comentário para os dedos de um qualquer intelectual de vão de escada). Prefiro não explicar como tal tragédia aconteceu, não vá um qualquer psicólogo, vizinho de vão de escada do pseudointelectual, aplicar-me um rótulo de homicida, psicopata ou outro qualquer epíteto traumatizante. De realçar, apenas, o facto de nunca mais ninguém me ter oferecido uma boneca. Lá levámos, então, a pobre Cindy ao Hospital das Bonecas.
Não sei se era esse o nome escrito na entrada do lugar (eu ainda não sabia ler), mas, se não era, devia ser. Era um excelente nome. O prédio antigo ficava numa movimentada, mas estreita rua da Baixa. O Hospital das Bonecas ocupava uma loja relativamente espaçosa num r/c, abaixo do nível da rua. Era um lugar escuro (para ajudar na recuperação das bonecas, pensava eu) e deveria parecer fantasmagórico aos olhos das outras crianças (aos meus não, nunca fui medrosa), com as prateleiras que forravam as três paredes repletas de bonecas nuas. Cheirava a bonecas nas quatro ruas que ladeavam aquela. Hoje cheira a carteiras de senhora, colares, postais (como se alguém ainda escrevesse postais!), roupas …
            Se as bonecas ainda fossem ao Hospital, nem elas já cheirariam a bonecas.

domingo, 3 de fevereiro de 2013



OU CÉSAR OU NADA

            O livro conta a história da família Bórgia - finais do século XV e início do século XVI -, centrando-se em Rodrigo Bórgia, enquanto papa Alexandre VI – cargo para o qual tinha sido eleito, apesar da sua notória promiscuidade – e no seu filho César, o mais ambicioso de todos. Em ambos, coexistia o sonho de estabelecer o domínio do clã em Itália, diminuindo, assim, o poder das outras grandes famílias. Num dos momentos mais conturbados da história de Itália, mesclam-se acontecimentos trágicos e violentos, conspirações, traições, assassinatos políticos e escândalos, no mesnmo patamar da arte, da ciência e da filosofia. Aliás, cruzam-se personagens históricas que conviveram com os Bórgia, tais como Maquiavel, Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo, etc.

 
 
Manuel Vásquez Montalbán nasceu em 1939, na Tailândia e faleceu em 2003. Foi escritor, jornalista espanhol, poeta, novelista. Teve como orientação política o comunismo.