... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

MORTE ANUNCIADA


                        A chuva miudinha que caía desde a manhã tornara o chão de folhas e caruma escorregadio e perigoso. O caminho era pouco mais do que um trilho, no meio do pinhal, que ligava a vila às várias aldeolas dos arredores. Por isso o sargento Horta e o soldado Dionísio avançavam com cuidado. As botas escorregavam constantemente e ambos sabiam o quanto lhes custaria uma perna partida, ali, no meio do nada. Dirigiam-se a casa, depois de um longo dia de trabalho, pleno das quezílias habituais na época: um homem que assassinara o cunhado por causa da herança de uma torneira de uma pipa de vinho e cujos conterrâneos pretendiam linchar, uma mulher que atirara o filho recem nascido ao ribeiro, porque o marido partira há dois anos para África e outras do género. A noite não tardaria e os dois homens queriam chegar depressa a casa.
            De repente, o soldado Dionísio, um rapazote de 17 anos, estacou, de olhos fixos no chão, alguns metros à sua frente. Vendo que o companheiro não avançava, o sargento perguntou-lhe:
- Então, homem, o que é que se passa?
- O meu sargento não vê? – retorquiu o rapaz.
- Não vejo o quê? – indagou o mais velho.
- O caixão, meu sargento! O caixão de pinho com uma cruz gravada no cimo! Uma cruz de pontas arredondadas! – balbuciou o rapaz, de olhos esbugalhados.
O sargento percebeu, pelo ar aterrado do rapaz, que ele via mesmo um caixão, no caminho à sua frente, onde ele próprio nada via. Para tranquilizar o companheiro, avançou por onde o suposto caixão estaria, sem nenhum problema.
- Vá, dá a volta ao caixão e vamos embora, porque daqui a pouco anoitece – sugeriu o sargento, ainda meio divertido com o medo do rapaz.
Cada vez mais aterrado, o soldado engoliu em seco e avançou uns passos, esperançoso de, tal como o seu superior, passar por aquela estranha visão.
O som de uma bota a bater na madeira fez eriçar todos os pelos do corpo do sargento.
O rapaz levantou-se da queda e, sem olhar para trás, correu pelo pinhal fora, sem que o sargento, depois de se recompor do choque que o som lhe havia causado, o conseguisse deter ou sequer alcançar.
Na manhã seguinte, o sargento Horta entrou no quartel da GNR, como habitualmente, de ar sério e compenetrado. Estranhou, no entanto, o ar cabisbaixo do soldado Mateus e do taberneiro da praça que já ali se encontrava.
- O que é que se passa? Morreu alguém? – perguntou, tentando aliviar o ambiente de consternação que pairava no ar.
- Então o meu sargento ainda não sabe? Morreu o Dionísio ! Olhe, vai ali mesmo a passar o caixão que há de levar o pobre – respondeu o soldado Mateus.
O sargento Horta olhou pela janela e o que viu deixou-o gelado: um caixão de pinho com uma cruz de pontas arredondadas gravada no cimo!
NOTA: E este avô não era nada dado a superstições, crendices e afins! : )

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

OLHARES DA MEMÓRIA


         Do cimo do outeiro, via-se, bem perto, a autoestrada, apesar de o ruído chegar distante.
Mas o que os seus olhos viam – esses olhos verdes onde sempre coubera o mundo - eram os campos que, na sua meninice, percorria, sozinho ou com os amigos, apanhando amoras que comia até a boca ficar completamente negra, as calças rasgadas e os joelhos arranhados.
Ali, onde a fila de carros engrossava lentamente, ficara o improvisado campo de futebol onde espetara um talo de couve numa perna, que lhe provocara um buraco considerável e uma infeção grave.
Mais além, onde o camião TIR ultrapassava o pequeno carro desportivo, os seus olhos viam a elevação do terreno por onde desciam, ele e os amigos, nos carrinhos improvisados com tábuas velhas e rolamentos de camiões que o dono da oficina da terra lhes oferecia.
Ao lado, parecia-lhe ver as pistas estreitas, mas cuidadosamente construídas, palco das corridas de caricas, minuciosamente decoradas para representarem as equipas de ciclismo da altura.
Maia adiante, os seus olhos penetravam no pinhal, que ainda existia, para onde, já adolescente, corria a refugiar-se. Sozinho, saía de casa com um livro debaixo do braço, algumas folhas de papel e um lápis, sem dizer – como era seu costume, aliás – para onde ia, e, através de caminhos bordejados de rosmaninho, embrenhava-se no meio das árvores. Sentava-se debaixo de um pinheiro, lia os clássicos a que conseguia deitar a mão quando a Biblioteca Itinerante passava na aldeia, escrevia o que a sua alma inocente e sonhadora lhe ditava e adormecia numa sesta tranquila, embalado pela suave canto da brisa primaveril, envolto nos reflexos do sol que perpassavam pelo meio das agulhas dos pinheiros.
Recordava a arte de um ninho a sugerir o chilrear de mil voos, o viço da folha a romper a terra num projeto de árvore, o sorriso grato das flores à carícia do sol, o veludo da pétala a chorar a gota de orvalho, as cores letárgicas de um fim de tarde. Por aqueles lugares pintava as cores das primaveras, futuros em águas de sonho, trepava impossíveis.
Pesavam-lhe os anos nos passos da caminhada diária que insistia em fazer. Envelhecera bem. Continuava a viver sozinho, porque se recusava a incomodar os filhos e as noras. Não suportava a ideia de se sentir um peso na vida dos outros e menos ainda a de se sentir tratado como um inútil. Passar os dias a ouvir falarem-lhe aos gritos – essa mania de se pensar que todos os velhos são surdos! – ou em tom infantilizado – essa mania de se pensar que todos os velhos se tornam idiotas! – enfurecia-o. Sempre fora um homem sereno, mas aos 89 anos os dias são claramente mais longos, a modorra do tempo pesa mais. Daí que, há alguns meses, quando queria fugir e voar pelo tempo antigo, tivesse ganho o hábito de percorrer, como podia, as ruas da sua aldeia e chegar até onde conseguia, o mais perto possível dos lugares da sua infância, encontrar-se consigo. Aquele era o seu lugar preferido. Sentava-se à sombra do grande plátano e ninguém o incomodava. Não que por ali passasse muita gente. Quase todos os familiares, amigos e conhecidos tinham morrido e os habitantes da sua aldeia eram, agora, todos gentes importantes, demasiado ocupadas com os seus pensamentos importantes sobre negócios importantes e outras gentes importantes. Como as ondas do mar, gerações nascem, outras declinam. Quem repararia num velho de outros tempos, de olhar e mente perdidos num tempo que lhes parecia nunca ter acontecido?! E que se importassem! Se alguma coisa nele não havia mudado era o caráter forte, intransigente, casmurro, como habitualmente diziam. Não suportava a hipocrisia. Por isso, a poucos permitia, ainda, chegar até ele. Paciência! O seu epitáfio mudaria tudo. Os epitáfios tendem a mudar o passado. Talvez lhe devessem escrever: “Tudo em mim foi registado, sou o arquivo da memória.”. Sem lamechices, como gostava.
Naquela manhã a saudade apertou-lhe mais o peito, pesou-lhe na alma. A lembrança de todos os que haviam passado pela sua vida tornou-se mais vívida. Sentiu todas as alegrias e todas as dores gravadas no corpo. Que marcas teria deixado nas vidas que tocara?
Sabia que o tempo lhe escasseava. O médico falara-lhe, vagamente, num problema de coração. Não se importara. A morte viria numa distração. A certeza chegara-lhe num rasgo de luz. Como naquele momento estranho quando, ainda quase criança, tudo o que lhe haviam ensinado na escola tivesse começado a fazer sentido. Seria, então, assim. Era, então, aquele o momento. Naqueles minutos que se lhe afiguravam tão importantes como todos os outros da sua vida, continuou a sonhar como se fosse viver para sempre, rasgando sombras da memória, escavando na alma até saborear a eternidade. A morte é uma arte. Partiria como vivera: sozinho, serenamente. Em paz com todas as decisões tomadas, as certas e as que, revelando-se erradas, aceitara como acertadas. Nos últimos momentos um sorriso no rosto. Indecifrável. Como a memória que levou no coração.

NOTA: Eu sei que o texto é longo ... mas o que fazer? Escrevo como falo: pelos cotovelos! Era lá capaz de cortar nos últimos minutos deste senhor! Ainda por cima deste senhor!

 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

OUTROS CARNAVAIS


OS NOIVOS

            A manhã de terça-feira de Carnaval ia adiantada, por isso as duas raparigas trabalhavam com afã para terminarem a estranha tarefa. Como qualquer menina prendada da época, as irmãs cedo tinham começado a aprender a costurar. As agulhas entravam e saíam dos tecidos com rapidez, deixando um rasto de pontos seguros e precisos. Finalmente, os fatos estavam prontos. Seguia-se, agora, a difícil empreitada de os vestir. Os tecidos eram delicados e o diminuto tamanho das roupas e de quem as vestia dificultavam a tarefa.
            Desceram as escadas do sótão a correr, gritaram para a mãe, que já preparava o almoço na cozinha, que iam a casa do Luizinho e voaram através do guarda-vento até à porta da rua. Atropelaram um gato e dois vizinhos antes de abrirem, com espavento, a porta do prédio onde vivia o amigo. O rapazote já as esperava e desceu num instante. A conspiração, que se iniciara no dia anterior, exigia compenetração. Luizinho recebeu a caixa de papelão das mãos das meninas e, com gravidade, dirigiu-se, sempre pelo passeio, até ao seu destino.
            A dona Carminda chegava do talho do senhor Dionísio, quando o filho dileto da rua a abordou com o ar sério que, apesar da idade, já o caracterizava.
            - Um presente das meninas Horta, dona Carminda.
            A senhora estranhou a situação, mas, pensando tratar-se de um pedido de desculpa daquelas pestes, e uma vez que o presente vinha pela mão do Luizinho, rapazinho ajuizado cujo futuro diplomático já se antevia, aceitou a caixa e abriu-a.
            A princípio não percebeu muito bem o que continha. Ao tocar nas estranhas roupas, no entanto, a senhora tornou-se lívida e, deixando cair a caixa, desatou a correr, rua abaixo, gritando, desgrenhada e enlouquecida.
            Pela porta entreaberta do prédio do amigo, as duas meninas choravam, copiosamente, de tanto riso. Espalhados no chão da rua, jaziam os corpos das duas ratazanas, mortas, na véspera - por ratoeiras  conseguidas sabe-se lá onde! O véu da “noiva” rasgado na queda, o fraque do ”noivo” sem uma manga. Um enlace desfeito!


NOTA: Asseguro que o 'humor' não se desenvolveu exatamente da mesma forma na família!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

OUTROS CARNAVAIS


O SÓTÃO

            A casa estava mergulhada no falso silêncio das rotineiras manhãs familiares. Manuel lia o jornal, ainda sentado na enorme mesa da cozinha, depois de se ter saciado com os dois pães frescos com manteiga e a gigantesca caneca do forte café da Brasileira. O odor era tão intenso que inundava toda a casa. Manuel sentia-se feliz. Voltara, na véspera, de mais uma viagem que correra muito bem – vendera todos os artigos – e esperava-o uma semana de descanso, em família. Era Carnaval e, portanto, as filhas, de sete e nove anos, encontravam-se de férias do colégio. Naquele momento brincavam no sótão, enquanto a mulher descera à porta da rua ao ouvir o pregão da senhora Carminda, a peixeira da Figueira que sempre por ali passava, antes de ir vender ao mercado da cidade. Sabia-lhe bem o silêncio da grande casa, acompanhado do burburinho distante das brincadeiras das filhas e do palrear das gentes que, já manhã cedo, se atarefavam numa azáfama tranquila, num tempo tranquilo.
            O lamento chegou-lhe ténue, quase indistinto. De mansinho subiu de tom e Manuel pensou perceber um choro infantil. Ter-se-iam as meninas magoado? Como a mulher tardasse em subir, e conhecendo bem as habituais traquinices das filhas que, educadas em colégios, sempre cheias de folhos e rendas e controladas pela mão férrea do ex sargento da GNR, mais pareciam dois rapazolas sem rei nem roque, Manuel resolveu subir ao sótão.
            Atravessou o pátio interior que levava ao longo corredor. O som parecia-lhe mais percetível. Era, decididamente, um choro. Começou a subir os dois lances de escadas que levavam ao sótão, dividido por um hall em duas largas divisões. À medida que subia, o coração ia-se-lhe apertando: o choro da filha mais nova fazia-se ouvir num tom agudo de aflição. Tentou acalmar-se, pensando nas travessuras de que as meninas eram capazes e nos sustos que já lhe haviam pregado. Mas, ao colocar um pé no primeiro degrau do segundo lance das escadas, sentiu-se gelar: ouvia, agora, distintamente, a voz da filha mais nova, gritando “Ai a minha mana! Ai que grande desgraça!” Manuel sabia que devia galgar os degraus rapidamente para acudir às crianças, mas o medo do que iria encontrar quase lhe toldava os movimentos, fazendo-o deslocar-se, como num pesadelo, num vagar enervante. Ao chegar ao hall do sótão, Manuel sabia já que a vida, tal como a conhecia, terminara. Numa das diabruras habituais, a filha mais velha magoara-se seriamente e morrera. Naqueles escassos e angustiantes segundos, pensou na mulher cujo desgosto pela morte da criança também pereceria. Lentamente, empurrou a porta ligeiramente entreaberta da divisão da esquerda – a maior, a mais escura e, também, a mais apetecível para as filhas! – e sentiu-se desfalecer: no meio da sala, a filha mais nova chorava, compungida, de joelhos e mãos postas, junto do enorme e velho baú. Jazendo em cima do tabuleiro que o encimava, estava o corpo da filha mais velha, quase todo coberto por flores, o rosto tapado com um lenço branco e as pequeninas mãos, sobressaindo, cruzadas sobre o peito. Agora era certo: a vida daquela família terminara!
            O rangido da porta alertou, primeiro, a criança mais nova. Num salto mais rápido do que o de uma gazela em perigo, levantou-se e afastou-se ligeiramente da mira do pai.
            - Estava aí, paizinho?! - perguntou no tom mais doce que a inesperada chegada do pai lhe permitiu.
            Por entre uma verdadeira chuva de flores, Manuel viu o corpo da “falecida” filha levantar-se num voo de garça desajeitada e esconder-se, como pôde, atrás da mais nova, líder incontestada do duo.
            Manuel sentia-se incapaz de sentir o que quer que fosse.
            Na vã tentativa de explicar a inusitada situação e conhecendo as fúrias que as suas travessuras provocavam no pai, a mais velha explicou, atabalhoadamente, sorrindo com um ar cândido:
            - Estávamos só a ensaiar para, mais logo, pregarmos uma partida de Carnaval à mãezinha.
            Apesar da pouca idade, leram, na lividez e no olhar do pai, o terror provocado pelo indubitável susto da mulher. Esgueirando-se pela porta, correram, como puderam, pelas escadas abaixo, perseguidas pelo finalmente grito libertado do pai:
            - Mariiiiiiiiiina! Judiiiiiite!


Que saudades destas tias!!!