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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O INVERNO DA VIDA



A pequena vila não passava de uma estrada relativamente estreita que serpenteava pela serra acima, recortada por cerca de meia dúzia de ruelas à direita de quem a subia.
Ao chegarem à pequena praça da Câmara Municipal, estacionaram o carro e saíram para fruírem do tímido sol de inverno que tão bem sabia depois de um longuíssimo mês de chuvas intensas e nuvens negras.
Atravessaram o pequeno jardim, atapetado por calçada portuguesa e alguns canteiros de relva verde e bem aparada, passando por alguns bancos de madeira e árvores recentemente podadas, até chegarem ao gradeamento que protegia a praça do precipício da serra que, ali, descia em escarpa ainda húmida das últimas chuvas. Sentaram-se nos bancos individuais de pedra que cortavam as grades de ferro a apreciarem a paisagem. Um deslumbramento! O rio corria, em baixo, separando a estrada estreitíssima do lado de cá da pequena praia fluvial do lado de lá. A língua de areia dava rapidamente lugar à serra que subia sinuosa e íngreme até se perder de vista.
O velho surgiu de um dos cantos do jardim, junto à pastelaria, privilegiadamente situada mesmo junto à ravina. Andava na direcção delas e ali parou, procurando conversa.
- Então vieram dar uma voltinha. Não são de cá.
Francisca, pouco dada a conversas com estranhos, ofereceu ao homem um sorriso amarelo, desencorajador. Mas, Clara retorquiu imediatamente:
- Não, não somos de cá. Viemos passear e apanhar sol.
O homem aproveitou a abertura e por ali ficou à conversa. Era alto e bem constituído. Apesar da idade avançada e da bengala em que se apoiava, mantinha uma postura direita e um olhar directo, sem constrangimento nem arrogância. Contou uma ou duas anedotas, declamou uns versos populares sobre a vila e, depois de uma brincadeira sobre o cemitério que se avistava do outro lado, aconselhou-as a visitarem o Penedo de Castro.
- Só falta a neve para aqui termos as montanhas da Suíça.
Estranharam que um homem claramente nascido naquele lugar soubesse alguma coisa sobre as montanhas da Suíça.
- Fui camionista de longo curso, durante muitos anos, conheço a Europa quase toda.
E assim lhes foi falando da vida preenchida que levara. Viagens, mulheres, negócios … Ouviam-no estupefactas. Não sendo literato, o homem era um excelente conversador, tinha um discurso fluente e conhecia o mundo.
Ainda lhes falou sobre a sua juventude, quando trabalhava na cidade a uns escassos vinte quilómetros da vila. Puseram-se a imaginar como seria a viagem, feita de bicicleta, em pleno Inverno, por uma estrada em condições péssimas. Contou-lhes, orgulhoso, como tinha salvo, uma vez, a vida a um conterrâneo que sofrera um acidente, junto ao rio. Uma época em que a morte ainda era uma tragédia e em que poucos morriam sozinhos.
A conversa foi esmorecendo e as duas mulheres despediram-se. Uma pequena volta de carro até fora da vila e, ao retornarem pelo mesmo caminho, voltaram a ver o velho que descia a estrada, ainda perto da praça onde o tinham deixado.
Clara ficou a vê-lo pelo espelho retrovisor. Quando o homem desapareceu, uma sensação estranha a invadiu. A lembrança daquele homem, agora velho e sozinho, mas outrora cheio de vida, juventude e força acompanhá-la-ia durante toda a viagem. Seria assim também com ela? Chegaria um tempo em que ninguém reconheceria nela a mulher de agora? Também ela viveria um dia apenas de lembranças? Apertou-se-lhe o coração ao pensar como seria o Inverno da sua própria vida …

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