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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O OUTRO LADO DO ESPELHO


Chovia. O verão havia-se espraiado pelo outono dentro tornando-o seco e quente. Até há alguns dias atrás, as pessoas comiam as castanhas de sandálias e mangas curtas. Mas, agora, o inverno parecia ter chegado com a pressa que lhe conferia o atraso.

Em casa, Jorge preparava o ritual do costume. Tinha acabado de jantar, a cozinha estava arrumada e o sofá esperava-o. Pôs um cd a tocar, Aznavour, She, claro, e assomou à janela. Chovia, agora, torrencialmente, o vento assobiava e ele sentiu um arrepio, apesar do calor da sala. Pensou nela. Àquela hora estaria também em casa, a trabalhar, ou teria saído com alguém? Apesar do ciúme que ainda o consumia a cada minuto preocupou-se mais por ela estar na rua com aquele temporal.

Tinham terminado a relação há mais de um mês, mas ele não conseguia esquecê-la. Nem sequer tentava. A recordação daquela mulher continuava a fazer-lhe companhia durante o dia e a noite. É certo que já não lhe enviava mensagens nem lhe telefonava, mas continuava a senti-la tão próxima como antes, quando passavam o dia a falar-se.

Suspirou e virou-se para se dirigir ao computador para reler, mais uma vez, os mails dela e as conversas que tinham mantido durante quase cinco meses. Era o que fazia todas as noites.

Mas, naquela noite, sentia-se estranho, como se algo importante estivesse para acontecer. Perdido nos seus pensamentos, tropeçou numa cadeira esquecida por ali e, desequilibrando-se, acabou mesmo por cair. Levantou-se, esfregando as têmporas, e … ficou parado, petrificado! No espelho que se erguia diante de si Jorge via, claramente, a imagem de Marta que o olhava com estranheza. Na verdade, a mulher parecia tão espantada e assustada como ele!

A duzentos quilómetros dali, Marta tentava concentrar-se no trabalho. Era sexta-feira, mas queria terminar aquele relatório para ficar com o fim de semana livre. No entanto, a chuva intermitente não a deixava raciocinar. Pensava nele. Tinha sido um amor de verão, mas sempre soubera que seria no inverno que mais sentiria a falta da companhia dele. Não conseguia esquecê-lo. Sabia que, naquele momento, ele também pensava nela. Aliás, nenhum dos dois duvidava dos sentimentos do outro. Apenas não conseguiam viver juntos.

Não adiantava. O relatório teria que esperar. Selecionou, no computador, o She do Aznavour e levantou-se para ir buscar umas bolachas. Mas, de súbito, estacou. No espelho, em frente a si, o homem olhava-a, perplexo. Jorge!

Instintivamente, ambos levaram as mãos ao espelho. E, no momento em que se tocaram, o imponderável aconteceu: caíram num precipício que os puxava para baixo, num rodopio estonteante. E, enquanto caíam, o pensamento de ambos voava para as palavras que costumavam trocar no início da relação. Nenhum dos dois queria comprometer-se, mas sempre se tinham sentido à beira de um abismo que os atraía fatalmente. E, agora, ali estavam, voando em direção ao desconhecido, de mãos dadas.

A queda demorara apenas breves segundos e, rapidamente, se viram numa sala com cerca de 20 metros quadrados, rodeada de dezenas de portas feitas de espelhos. Todas pareciam iguais e não conseguiam sequer distinguir aquela por onde tinham entrado.

- Diz-me que isto é um sonho, por favor.

- O nosso sonho – sorriu Jorge.

- Tu brincas!? Não tens noção do que está a acontecer? Não percebes que estamos noutro mundo, fechados numa sala de espelhos, sem sabermos como sair daqui??

Marta continuava apavorada, mas, como sempre, rapidamente recuperara o sangue-frio e voltara ao costume de falar pelos cotovelos. Percebia que Jorge não estava demasiado incomodado com a situação. Percebia mesmo o agrado que ele sentia por estar ali, só porque estava com ela. E Marta também não conseguia perceber se o seu coração batia assim tanto por causa do inusitado da situação ou também por causa da presença dele.

- Repara, aquelas três portas parecem um pouco diferentes – disse Jorge. – as ombreiras são bastante mais grossas do que as outras. Experimentemo-las.

Abriram primeiro a da esquerda. Mal podiam acreditar. Do lado de lá da porta a sala de Jorge aparecia exatamente como ele a deixara há minutos atrás. Tentaram a da direita e lá estava o quarto de Marta, exatamente como antes.

- Quando a esmola é demais …

Marta achava estranho que conseguissem sair dali tão facilmente, mas não queria desperdiçar aquela oportunidade.

- Falta-nos a porta do meio. Não podemos voltar a casa sem vermos o que está por detrás desta porta.

- Estás doido!? Temos que aproveitar esta hipótese para sairmos daqui rapidamente!

- Vá lá, onde é que está aquele teu recanto aventureiro? Consegues mesmo sair daqui sem ver o que está ali? – sorriu-lhe, trocista, sabendo que ela não resistiria.

- Está bem. Entreabrimos a porta e espreitamos, só um bocadinho – cedeu ela.

Jorge não esperou que Marta mudasse de ideias e abriu a porta, escancarando-a. A princípio não perceberam. Do lado de lá via-se uma sala aparentemente normal. Mas ambos se sentiram percorridos por um calafrio. A sala parecia-lhes familiar como se a conhecessem há muito tempo. E o mais estranho é que cada um sabia que o outro sentia o mesmo.

- Entramos? – perguntou ele, desafiador.

- Não … - mas a voz dela hesitava.

Jorge pegou na mão de Marta e puxou-a devagarinho. Ela não resistiu. Tivera sempre dificuldades em resistir-lhe. Foram avançando. Marta ia dizendo que aquela sala era magnífica, simplesmente perfeita.

Virou-se para Jorge ao aperceber-se de que ele não lhe respondia. Viu-o lívido. Olhava para uma foto que estava em cima de um móvel que logo cativou Marta. Mas também ela se tornou lívida. Na fotografia, Jorge e Marta riam, abraçados, numa pose descontraída. Vestiam roupas que nunca tinham usado, estavam numa praia que nunca tinham conhecido. Entreolharam-se apenas, receando até o olhar um do outro. Passearam os olhos pela sala, perscrutando cada pormenor. O que viam deixava-os perplexos. Por todo o lado eram bem visíveis os vestígios de uma vida de casal. As fotografias que se perfilavam pelos móveis e paredes da sala eram testemunhas inabaláveis de uma vida em comum.

- Isto não está a acontecer. Ajuda-me, por favor! – gemeu Marta.

- É simples: de alguma forma, entrámos numa outra dimensão e encontrámos uma vida paralela à nossa. Nesta dimensão conhecemo-nos mais cedo, namorámos, casámos, vivemos nesta casa …

- A casa dos nossos afetos – sorriu Marta.

Jorge estranhou que o pragmatismo dela não a tivesse feito já voltar as costas àquela loucura. Sentiu-a ceder, enternecer-se com a ideia daquela vida a dois que lhes chegava reconfortante e tentadora. Sentou-se no sofá, puxou-o para ele e ficaram assim, uns momentos, de mãos dadas, saboreando aquela ilusão de vida. Jorge abraçou-a e começou a acariciá-la. A lareira estava, providencialmente, acesa e a luz era ténue. Marta deixou-se levar pelo sabor dos beijos dele. Que saudades tinha! Ainda sussurrou:

- Não … os donos da casa podem chegar … 

- Os donos da casa somos nós, querida - murmurou Jorge, aspirando o perfume da pele dela atrás da orelha.   

 Acordaram horas depois – ou o que lhes parecia ter sido horas – com o crepitar da lenha. Marta levantou-se rapidamente e preparava-se para sair dali, puxando Jorge que não parecia nada disposto a deixar aquela sala.
           - Não percebes a oportunidade que temos nas mãos? Se ficarmos, podemos viver esta vida. Juntos! Deixo tudo por ti, entendes?

- Entendo, sim. Entendo que tens um único laço na tua vida real. Eu tenho muitos. E, por mais aventureira que seja, tenho consciência de que “isto” não é real. Não sabemos sequer o que aconteceria se ficássemos.

Jorge sabia que não conseguiria demovê-la. Não valia a pena iniciar outra discussão. Sentiu-lhe a firmeza da voz. Decidiu, portanto, ceder e levá-la dali para fora. No fundo, também tinha medo do que poderia acontecer. Medo por ela. Deixou-se arrastar até à porta. Ambos hesitaram antes de saírem. Viraram-se para trás, passaram os olhos por aquele lugar, o casa deles. Marta virou-se repentinamente, puxando Jorge. Fechou a porta sem hesitar.

- Pronto, agora é só abrirmos as portas certas – disse Marta, convictamente.

- Espera! Quando voltarmos à vida real, provavelmente, não nos lembraremos do que aconteceu. Mas, mesmo que nos lembremos, não quererás falar comigo. Estas podem ser as últimas palavras que trocamos.

Marta aproximou-se dele, segurou-lhe o rosto nas mãos e perguntou-lhe com a doçura que o amor por aquele homem sempre lhe suscitara:

- Acreditas mesmo que não nos voltaremos a falar?

Soltou-lhe o rosto, depois de lhe depositar um beijo terno nos lábios. Virou-se, resoluta, abriu a porta que levaria ao seu quarto e entrou.

Jorge também não hesitou. Sem ela, aquele lugar tornara-se frio e aterrorizador. Abriu a porta que levava à sua sala e por ela desapareceu.

Marta estava sentada no sofá do quarto. Há dez minutos que olhava fixamente para o espelho. Não se lembrava de como chegara ali, mas recordava cada segundo desde que, ao levantar-se para ir buscar bolachas, deparara com Jorge do outro lado do espelho. Sentia-se confusa, triste, como se parte da sua alma tivesse ficado naquela outra sala, naquela vida que também era a sua. Seria possível que ela existisse numa vida paralela a esta, numa vida em que vivia com o homem que amava tudo o que ambos tinham sonhado juntos? Seria por isso que nesta vida em que não conseguiam entender-se também não conseguiam separar-se definitivamente? Precisava tanto dele naquele momento. Provavelmente a parte da alma que lhe faltava não tinha ficado na outra vida, mas sim na alma dele. Não queria ligar-lhe. Não sabia se ele se lembrava do que tinha acontecido e receava que a considerasse louca se lhe contasse.

Não precisou de esperar muito. O som do telemóvel despertou-a daquela letargia em que se encontrava. A voz dele soou-lhe como nunca. Parecia-lhe agora que estivera prestes a afogar-se, que não conseguia respirar e que só ao ouvi-lo subira à superfície da água.

- Meu Deus! Não imaginas como precisava de te ouvir!

- Isso quer dizer que não sonhei aquele sonho sozinho? – perguntou-lhe ele, ainda um pouco trémulo.

- Morri de medo que não te lembrasses. Seria terrível viver com esta memória sozinha.

- Precisamos de falar sobre isto – insinuou ele, timidamente.

- Vem!

- Estou aí em duas horas. Espera por mim, querida.

Na voz dele ouviu-lhe o sorriso luminoso, o brilho do olhar, sentiu-lhe o calor do coração. Queria-o tanto como ele a ela. E tudo perdeu importância. O sonho, a vida paralela ou o que quer que fosse. Nada importava a não ser o reencontro que se aproximava. Nenhum dos dois pensava já no que acontecera. O amor dos dois era mais importante, maior que tudo. Talvez o que acontecera tivesse sido apenas fruto da vontade enorme que tinham de estarem juntos, de se amarem, de não se perderem. Em duas horas voltariam a estar juntos. Numa outra casa, numa outra vida ou na vida que construiriam para eles. Nenhum dos dois duvidava de que a vida de cada um estaria para sempre ligada à do outro.

Deste lado do espelho, Jorge e Marta encontrariam, certamente, uma forma de permanecerem juntos. Destino? Não. Simplesmente, amor.







(Texto escrito para o blogue Fábrica de Histórias)







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