... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

OUTROS CARNAVAIS


O SÓTÃO

            A casa estava mergulhada no falso silêncio das rotineiras manhãs familiares. Manuel lia o jornal, ainda sentado na enorme mesa da cozinha, depois de se ter saciado com os dois pães frescos com manteiga e a gigantesca caneca do forte café da Brasileira. O odor era tão intenso que inundava toda a casa. Manuel sentia-se feliz. Voltara, na véspera, de mais uma viagem que correra muito bem – vendera todos os artigos – e esperava-o uma semana de descanso, em família. Era Carnaval e, portanto, as filhas, de sete e nove anos, encontravam-se de férias do colégio. Naquele momento brincavam no sótão, enquanto a mulher descera à porta da rua ao ouvir o pregão da senhora Carminda, a peixeira da Figueira que sempre por ali passava, antes de ir vender ao mercado da cidade. Sabia-lhe bem o silêncio da grande casa, acompanhado do burburinho distante das brincadeiras das filhas e do palrear das gentes que, já manhã cedo, se atarefavam numa azáfama tranquila, num tempo tranquilo.
            O lamento chegou-lhe ténue, quase indistinto. De mansinho subiu de tom e Manuel pensou perceber um choro infantil. Ter-se-iam as meninas magoado? Como a mulher tardasse em subir, e conhecendo bem as habituais traquinices das filhas que, educadas em colégios, sempre cheias de folhos e rendas e controladas pela mão férrea do ex sargento da GNR, mais pareciam dois rapazolas sem rei nem roque, Manuel resolveu subir ao sótão.
            Atravessou o pátio interior que levava ao longo corredor. O som parecia-lhe mais percetível. Era, decididamente, um choro. Começou a subir os dois lances de escadas que levavam ao sótão, dividido por um hall em duas largas divisões. À medida que subia, o coração ia-se-lhe apertando: o choro da filha mais nova fazia-se ouvir num tom agudo de aflição. Tentou acalmar-se, pensando nas travessuras de que as meninas eram capazes e nos sustos que já lhe haviam pregado. Mas, ao colocar um pé no primeiro degrau do segundo lance das escadas, sentiu-se gelar: ouvia, agora, distintamente, a voz da filha mais nova, gritando “Ai a minha mana! Ai que grande desgraça!” Manuel sabia que devia galgar os degraus rapidamente para acudir às crianças, mas o medo do que iria encontrar quase lhe toldava os movimentos, fazendo-o deslocar-se, como num pesadelo, num vagar enervante. Ao chegar ao hall do sótão, Manuel sabia já que a vida, tal como a conhecia, terminara. Numa das diabruras habituais, a filha mais velha magoara-se seriamente e morrera. Naqueles escassos e angustiantes segundos, pensou na mulher cujo desgosto pela morte da criança também pereceria. Lentamente, empurrou a porta ligeiramente entreaberta da divisão da esquerda – a maior, a mais escura e, também, a mais apetecível para as filhas! – e sentiu-se desfalecer: no meio da sala, a filha mais nova chorava, compungida, de joelhos e mãos postas, junto do enorme e velho baú. Jazendo em cima do tabuleiro que o encimava, estava o corpo da filha mais velha, quase todo coberto por flores, o rosto tapado com um lenço branco e as pequeninas mãos, sobressaindo, cruzadas sobre o peito. Agora era certo: a vida daquela família terminara!
            O rangido da porta alertou, primeiro, a criança mais nova. Num salto mais rápido do que o de uma gazela em perigo, levantou-se e afastou-se ligeiramente da mira do pai.
            - Estava aí, paizinho?! - perguntou no tom mais doce que a inesperada chegada do pai lhe permitiu.
            Por entre uma verdadeira chuva de flores, Manuel viu o corpo da “falecida” filha levantar-se num voo de garça desajeitada e esconder-se, como pôde, atrás da mais nova, líder incontestada do duo.
            Manuel sentia-se incapaz de sentir o que quer que fosse.
            Na vã tentativa de explicar a inusitada situação e conhecendo as fúrias que as suas travessuras provocavam no pai, a mais velha explicou, atabalhoadamente, sorrindo com um ar cândido:
            - Estávamos só a ensaiar para, mais logo, pregarmos uma partida de Carnaval à mãezinha.
            Apesar da pouca idade, leram, na lividez e no olhar do pai, o terror provocado pelo indubitável susto da mulher. Esgueirando-se pela porta, correram, como puderam, pelas escadas abaixo, perseguidas pelo finalmente grito libertado do pai:
            - Mariiiiiiiiiina! Judiiiiiite!


Que saudades destas tias!!!  

2 comentários:

  1. Consegui pregar-me um susto, colocar-me no lugar do pobre pai destes "diabinhos", afinal suas tias -;)
    Confesso que se estivesse no lugar do pai não sei o que lhes faria :))))

    Beijinho

    ResponderEliminar
  2. Olá, Ana!

    Brincadeira de mau gosto, apetece dizer. Que felizmente terminou com um milagre a pôr fim a um susto, e certamente com uma renovada felicidade desse pai ao recuperar a filha que já dava como "morta"...

    Abraço amigo.
    Vitor

    ResponderEliminar