... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


HOSPITAL DAS BONECAS

            E de repente aquele cheiro. Cheiro de boneca antiga. Lembrei-me da minha boneca Cindy (logo eu que nunca fui de brincar com bonecas!).
Esta foi, com certeza, a avó da Barbie. Ao contrário das bonecas da época, a Cindy era magérrima. Alta, esguia, de cabelos loiros, compridos, olhos azuis e a pele de um bege rosado. A minha tinha, também, já, um considerável guarda roupa confecionado pela minha mãe (santa paciência de mãe!). Destacava-se um elegantíssimo vestido de organdi vermelho, corpo justo, sem mangas (mas, também, sem decote!), com saia cortada em três farfalhudos folhos.
            Um dia, a Cindy perdeu a cabeça. Literalmente. (Apetecia-me comentar “Como acontece a qualquer loira que se preze.”, mas sou amiga de loiras tão interessantes e de morenas tão ocas que deixo espaço para tal comentário para os dedos de um qualquer intelectual de vão de escada). Prefiro não explicar como tal tragédia aconteceu, não vá um qualquer psicólogo, vizinho de vão de escada do pseudointelectual, aplicar-me um rótulo de homicida, psicopata ou outro qualquer epíteto traumatizante. De realçar, apenas, o facto de nunca mais ninguém me ter oferecido uma boneca. Lá levámos, então, a pobre Cindy ao Hospital das Bonecas.
Não sei se era esse o nome escrito na entrada do lugar (eu ainda não sabia ler), mas, se não era, devia ser. Era um excelente nome. O prédio antigo ficava numa movimentada, mas estreita rua da Baixa. O Hospital das Bonecas ocupava uma loja relativamente espaçosa num r/c, abaixo do nível da rua. Era um lugar escuro (para ajudar na recuperação das bonecas, pensava eu) e deveria parecer fantasmagórico aos olhos das outras crianças (aos meus não, nunca fui medrosa), com as prateleiras que forravam as três paredes repletas de bonecas nuas. Cheirava a bonecas nas quatro ruas que ladeavam aquela. Hoje cheira a carteiras de senhora, colares, postais (como se alguém ainda escrevesse postais!), roupas …
            Se as bonecas ainda fossem ao Hospital, nem elas já cheirariam a bonecas.

1 comentário:

  1. Olá, Ana!

    Uma original forma de contar uma história bem contada, em que o essencial fica por contar...Sem sabermos nós o que terá passado pela cabeça da loira Cindy, que levou a sua dona a fazer-lhe tamanho mal- ainda que não saibamos qual...

    Abraço; bom fim de semana.
    Vitor

    ResponderEliminar