... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


UM PAI ENTRE FILHAS

A manhã mal ía a meio, quando o pai irrompeu pela sala, com cara de muito poucos amigos, perguntando:
- Onde é que está a Marina?
A segunda filha, habituada aos disparates que ela própria e a irmã mais velha costumavam fazer desde pequenas e às fúrias do pai, sabia bem como amolecer-lhe o coração.
- Não sei, paizinho, a Marininha não está em casa, deve ter ido ao mercado – respondeu, com o ar mais inocente que conseguiu compor.
Mas, desta vez, o pai não parecia disposto a deixar-se divertir com os trejeitos claramente forçados daquela filha. Criar quatro raparigas não estava a ser tarefa fácil, apesar do que era pressuposto na primeira metade do século XX. É que as que lhe tinham calhado em sorte pareciam arraçadas do Diabo! Nem a mais nova, nascida dezassete anos depois da primeira – fora da época!, como dizia a mulher -, parecia augurar qualquer facilidade.
Mesmo assim, a mais velha passara das marcas! Uma menina de família a namorar, à noite, à porta da rua! Pior: dentro do átrio da entrada! Num vão de escadas! A cara caíra-lhe de vergonha quando um vizinho lhe contara. Mas o patife do Pipi ia ver-se com ele! Pipi era o diminutivo meio carinhoso meio trocista colocado ao desafortunado pela irmã mais nova, resultado de alguns subornos, tais como o cestinho de verga com que a presenteara e o dinheiro que lhe dava para ela ir comprar rebuçados, enquanto namorava “tranquilamente” a irmã mais velha.
Ah, mas a filha, essa ía aprender o que acontecia às meninas que desobedeciam a ordens expressas do pai: “Não namorar sozinha!”, ”Não namorar à noite!”. Deveria ter imposto uma única e simples regra: ”Não namorar!”. Diacho da rapariga! A quem teria saído assim namoradeira? À mãe não, com certeza. Devia era fechar as quatro num convento. Enfim, era no que dava viver numa casa só de mulheres!
Fechado no sótão, absorto nestes pensamentos, ouviu o som da cancela da porta a fechar-se. Levantou-se, respirou fundo e … perdeu os preciosos segundos que seriam responsáveis pela vergonha que lhe sucederia.
Quando chegou à sala, voltou a encontrar a segunda filha novamente sozinha.
- Onde é que se meteu a tua irmã, Judite?
Perante o ar ameaçador do pai e o cinto que ele ostentava na mão, a rapariga, aterrorizada, deixou-se trair pelo olhar de aflição que dirigiu à cama dos pais que se vislumbrava através da porta entreaberta.
Ao ouvir o vozeirão atroador do pai, acorriam, já, à sala, a mãe e as outras duas irmãs mais novas.
De cócoras, junto à cama debaixo da qual a filha mais velha se escondera, o pai raspava o cinto no chão, tentando puxá-la para fora.
- Manuel, nãoooooooo!!! – ainda lhe gritou a mulher.
Mas, já o bacio, cheio de uma noite longa, se entornava em cima do pobre homem que, segundo reza a História, era asseadíssimo!
Perante a desgraça, divididas entre a aflição, a comiseração ou o riso, as cinco não resistiram ao último e as gargalhadas rebentaram pelo quarto, espalhando-se em ondas de afeto!
Quanto à reação do pai, nunca nada foi comentado na família.
Do “inocente” Pipi não mais se soube (embora lá em casa houvesse uma espada e um revólver!).
Ao longo de vários anos, vários outros namorados terão sobrevivido à vivacidade das quatro raparigas, à vigilância apertada da mãe e às fúrias de um pai que, certamente, terá sentido um imenso alívio ao casar a última filha!

(Sempre saudades destas tias!)

1 comentário:

  1. Olá, Ana!

    Coitado do senhor, o que ele deve ter passado enquanto não viu as filhas casadas.Com Romeus como esse tal Pipi a rondar a porta, sabidão, com a escola toda.Difícil ser pai naqueles tempos, sempre a pensar no pior, não fosse uma "desgraça" acontecer à filha, e lá ter ele que ficar com ela em casa...

    Como os tempos mudaram...felizmente digo eu, ainda que às vezes "demais", ou talvez não - não sei...

    Viagem ao passado bem contada.
    Abraço, e bom fim de semana.
    Vitor

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