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domingo, 18 de agosto de 2013


UM POÇO À BEIRA-MAR

Saí da água gelada, tiritando daquele friozinho alegre de férias, e subi a areia aos pulinhos para me deitar ao sol a secar. Tenho sete anos e não há nada na vida de que goste mais do que estar metida dentro deste mar gelado e bravio. É claro que a presença dos meus pais constantemente à minha volta me dava aquela ideia de segurança total. Para quem com um ano de idade berrava como se a estivessem a esquartejar só de ver a areia … melhorei até demais, segundo os meus pais.

            A gritaria e a correria da multidão já tinham começado há uns minutos, quando consegui escapulir-me das mãos da minha mãe, gritando-lhe que ia ter com o meu pai que, entretanto, já estava à beira mar. Se os sete anos nos impedem de fazer muitas coisas, também nos permitem cirandar por entre uma mole humana afligida por uma tragédia.

            Na areia molhada, quase dentro de água (felizmente, naquela manhã, a maré estava baixa), um grupo de homens, deitados de barriga para baixo, formava um círculo à volta de uma corda que demarcava a linha para lá da qual não deveriam passar. Atrás de cada homem, outro o segurava, firmemente, pelos pés. Os homens deitados no chão escavavam a areia dentro do círculo marcado pela corda com um cuidado inquieto.

A certa altura, no meio do círculo, longe do alcance das mãos dos homens, a areia molhada começou a abater, afundando-se como num remoinho. A multidão gritou em uníssono. Num ápice, um dos homens soltou-se do que lhe segurava as pernas, saltou para o meio do círculo e escavou, desesperadamente, o buraco que a areia abria. Em poucos segundos tinha o braço direito todo metido dentro da areia e ao retirá-lo todos pudemos ver, na sua mão, uma pequena mecha de cabelos claros. Os outros homens esqueceram o cuidado, saltaram para dentro do círculo e escavaram furiosamente a areia à volta do braço do primeiro. De dentro do emaranhado de braços e mãos surgiu, então, uma visão horrenda: a cabeça de um garoto de cerca de dez anos! O rosto coberto de areia, os olhos fechados, a língua de fora completamente roxa e cheia de areia.

Mais confiantes na escavação, rapidamente retiraram todo o corpo inerte do miúdo. Ao grito horrorizado de quem assistia ao salvamento seguiu-se um silêncio arrepiante. Até as ondas marulharam baixinho. Mas bastaram poucos segundos para que o rapaz tossisse e iniciasse uma berraria pouco própria de quem deveria ter os pulmões cheios de areia.

Foi a única vez que vi um grupo de homens chorar.

Infelizmente nunca soube o que se terá passado a seguir. A mão do meu pai que me deveria ter dado dois pares de estalos e a voz da minha mãe que me deveria ter gritado silenciaram-se num carinho ainda mais doce do que o habitual.

1 comentário:

  1. Olá, Ana!

    Não lhe invejo a experiência, sobretudo nessa tenra idade.Tivesse ela acabado mal e seria uma desagradável memória, e certamente algumas noites de sono agitado...

    No rio ou mar, sempre me senti à vontade, numa altura em que sempre achava que a água estava boa, mesmo quanto estava bem fria - como na batida praia da Figueira...

    E pais são mesmo assim: mais protectores e carinhosos com os filhos, perante a visão de que os poderiam ter perdido...

    História de dia de praia muito bem contada, que por não ter corrido bem ganhou um lugar na memória...

    Boa semana, e um abraço amigo.
    Vitor

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