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quarta-feira, 27 de março de 2013


HISTÓRIA DE UM PESCADOR DE ÁGUA DOCE E DE CERTOS PEIXES (MAIS E MENOS) INTELIGENTES

Chegou às cinco da tarde. Hora pouco habitual para ir à pesca, mas para ele, a melhor. Depois do trabalho, apetecia-lhe relaxar, completamente dedicado ao que se propunha fazer. Era um traço da sua personalidade: só se dedicava a algo quando tinha o espírito plenamente disponível.   Muito mais do que um desporto, para ele a pesca era uma arte. O seu prazer começava com a preparação mental. Ia programando o melhor local, escolhia, mentalmente, o melhor isco, o anzol mais apropriado e, claro, o mais importante, selecionava meia dúzia de peixes passíveis de serem pescados. Toda esta preparação mental contribuía para exacerbar a antecipação do prazer da conquista. (Conquista? Pesca, pesca, claro! Que engano, o meu!)
            E cá temos o nosso pescador de água doce (de água doce, sim, que a pesca em alto mar era coisa para lhe dar trabalho a mais para satisfação intensa, mas breve!) refastelado na sua confortável cadeira, de cana na mão e sorriso plácido de predador certo da eficácia da sua mão.
            O isco foi lançado aos vinte e cinco peixes que por ali nadavam. Dez aproximaram-se. Escolheu cinco alvos. Esmerou-se na ostentação do isco. Um dos peixes, mais afoito, aproximou-se, perigosamente. Sorriu com serenidade. O peixe rodeou o isco, deu às barbatanas, praticamente pestanejou, qual diva sensualmente ingénua! Num repente, abocanhou o isco e … afastou-se rapidamente! Ao contrário do que se poderia pensar, o nosso, por vezes incauto, pescador, reconhecendo a inteligência do adversário, olhou-o enquanto se afastava com uma sensação de pasmo, mas também de respeito por tal adversário.
            E já um dos cinco peixes que marcara anteriormente como vítima lhe chamava a atenção.  Apesar de se destacar um pouco do cardume, via-se que era um daqueles peixes que mordem o isco e se deixam apanhar com alguma facilidade. Foi-lhe acenando com o isco, tornando-o atrativo, … até que a vítima se rendeu e se deixou prender. O pescador de água doce foi recolhendo a linha com muito cuidado (não fosse o peixe conseguir perceber como se desembaraçar do anzol!) e, pouco tempo depois, admirava o exemplar que tinha na mão. Sabia que não lhe restava muito tempo, nem tal lhe interessava. Conhecia o tempo exato durante o qual poderia usufruir do peixe, sem o matar. Perscrutou-lhe cada escama, acariciou-lhe a pele, melífluo, e, naquilo que considerou um gesto magnânimo, atirou-o, de novo, ao rio!
            Não o queria verdadeiramente. Nem àquele nem a nenhum dos outros que por ali pescava. O que o entusiasmava era o prazer do jogo, a paciência e o tempo que investia na preparação, a luta que, de quando em vez, um ou outro peixe lhe dava, a conquista e, finalmente, a magnanimidade da devolução da criatura ao seu estado anterior.
            Com tranquilidade, arrumou todas as suas coisas no carro e sentou-se ao volante. Suspirou, exibindo um sorriso plácido de verdadeiro regozijo por ser exímio naquela arte e partiu.
             Do que acontecia aos seres cujas vidas eram tocadas pelo pescador de água doce não reza a História.

 

 

1 comentário:

  1. Olá, Ana!

    Muito estranho, este pescador,cujo prazer terminava no momento em que tinha a presa na mão.Convencido e vaidoso dos seus talentos,e que certamente não pescaria no rio ou no mar, digo eu...

    Está muito bem escondida a metáfora,Ana, que só deixa a barbatana de fora...e também muito bem escrita: Só a descobri na segunda vez que lancei o anzol...

    Que tenha uma Feliz Páscoa, com tudo de bom!
    Um abraço
    Vitor

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