... pelo simples e indelével prazer da leitura e da escrita!

terça-feira, 23 de outubro de 2012


MACHOS E FÊMEAS


            Fuscas espreguiçou-se, languidamente, na fofa almofada  colocada num canto estratégico da sala. Fugira das mãos geladas da chuva e aquecia-se, agora, na poeira dos dedos quentes do sol tardio. Havia dois meses que chegara àquela casa e reconhecia, apesar da rabujice que habitualmente demonstrava, que já se afeiçoara ao espaço e àquela dona de humores incertos, mas intensos. Apesar de partilhar a absurda mania de os humanos tratarem os gatos como se fossem idiotas e de o encher de festas lamechas. Chamava-lhe ‘’bichaninho’’ – ‘’bichaninho’’, ele!!! -, mas também tinha o seu feitiozinho, coisa que lhe agradava profundamente. Percebia-lhe o caráter semelhante às criaturas do mesmo género da sua própria espécie. Era volúvel e tinha acessos ora de fúria ora de uma lamechice enjoativa. Uma vez ouvira-a, de telemóvel na mão, dizer ao interlocutor: “Tenho horror do ridículo!”.  Sentia alguma solidariedade para com o pobre, que adivinhava ser, salvaguardadas as devidas diferenças, uma criatura humana do seu género. Mas, aquelas palavras da dona fizeram-no render-se a ela. Afinal, o género feminino devia ser todo igual! Ele, sim, considerava-se um gato de raça. Ciumento, interesseiro e desconfiado.

            Por vezes, a dona escorria mel, a voz aveludava-se-lhe e quase ronronava. Outras - a Fuscas eriçavam-se-lhe os pêlos! -, quase a via pôr as unhas de fora, afiadas e prontas a rasgarem o pescoço do interlocutor. Apesar do caráter insolente de que se gabava, sentia um certo respeito por uma fêmea irritada. (Se ela pudesse ler-lhe as palavras! Não percebia por que é que as criaturas humanas do sexo feminino sentiam como pejorativa a palavra fêmea. Mas sabia que, se a dona o ouvisse … nem queria imaginar o que lhe aconteceria!) Sabia do que eram capazes. E a sua dona exasperava-se com alguma facilidade. Ou seria aquela criatura específica do género masculino que a levava a limites que já lhe pareciam ilimitados? A verdade é que não lhe conhecera outro interlocutor. Já percebera que ela ficava solenemente irritada quando percebia que ele lhe percebia os ciúmes de alguém, em algum lugar que ele nem presumia. E quando percebia que ele a picava e amuava, propositadamente. Enfim, apetecia-lhe dizer como nos filmes que a dona o punha ver, sentado ao lado dela no sofá: “Get a room!” (Que ela não o ouvisse, claro!). Outras vezes falavam seriamente. Nessas alturas, Fuscas aguçava as orelhas para ouvir melhor. Ouvia-a responder-lhe, abespinhada e de nariz arrebitado: ” A vida é feita de momentos. O valor do tempo está na intensidade com que é vivido.”

            E não saíam daquilo. Ambos queriam o mesmo, ambos diziam o mesmo, ambos pensavam o mesmo, ambos caminhavam na mesma direção, mas insistiam em contrariar-se. A verdade é que ambos se sentiam seguros naquela zona de conforto, ora pachorrenta ora frenética. Que se entendessem! Aquilo estava para durar!

            O sol adormecera, de novo, e as nuvens derramavam-se sobre a Terra numa cortina de água cerrada. Fuscas enroscou-se mais na macia almofada e fechou os olhos ao som do sorriso da voz da dona.

3 comentários:

  1. Olá, Ana!

    Fábula com uma mulher temperamental e um gato inteligente que não falava mas fazia de confidente. E que se entendiam e aturavam lindamente:casamento de conveniência, diria eu,como quase sempre acontece com estas duas espécies de "gente"...

    Viva a criatividade e inspiração; parabéns!

    Boa semana; um abraço

    Vitor

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  2. Vítor

    Gosto mesmo do seu humor!

    Mais: é por pessoas assim, como o Vítor, que vamos escrevendo, por aqui, aquilo que nos sai da alma. É verdade que, a partir do momento em que as nossas palavras passam a ser públicas, tornam-se pertença de quem as lê e interpreta de acordo com as suas circunstâncias de vida. (Passava-me lá pela cabeça o conceito de casamento tão perfeito entre duas criaturas com aquelas personalidades! "Temperamental"!? adjetivo perfeito!): )

    Obrigada pelas suas palavras sempre atentas e atenciosas. : )

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  3. Também gosto muito de gatos, muitos não entendem sua natureza, mas quem tem sabe que são realmente ótimos confidentes.

    Seria ótimo ter sua opinião sobre meu novo projeto:
    http://himperiter.blogspot.com.br
    Um Capítulo novo toda sexta.

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